Fernanda Torres é uma “nepobaby” da “zona sul”. Marcelo Rubens Paiva vem de “família rica, avô coronel”. Walter Salles é “bilionário, herdeiro de escravagistas”.
Os termos vêm de um debate online sobre “Ainda Estou Aqui”. O tema central foi o “lugar de fala” dos principais criadores ligados ao filme. A conversa foi entre gente inteligente e informada.
Mas na turma não tinha ninguém tão experiente na edição de textos opinativos quanto eu. E nem tão preocupado com o que é ou deve ser uma crítica. E o que é e deve ser A Crítica, com maiúsculas.
É assunto sobre o qual matuto desde os anos 80. Não resisti e entrei no papo. Meus comentários foram mais ou menos os seguintes:
“Quando eu era editor da Bizz, 34 anos atrás, decretei que na seção de Lançamentos era proibido aliviar porque o artista era independente, tinha ficado dez anos pra gravar, era batalhador, gente fina, miserável etc.
Tá à venda o LP? Custará pro leitor a mesma coisa que o novo disco do Guns N´Roses? Então o LP tem que se sustentar sem mais nada. O compromisso é com o leitor.”
Eu dizia assim para todos que escreviam as resenhas: lembre sempre que nosso leitor é um carinha de Sorocaba com 15 anos e dinheiro para comprar um único LP este mês.
Claro que este rigor igualmente valia para o LP esperadésimo, prioridade em que a gravadora tinha investido os tubos. É frouxo? Pau nele.
Seria ótimo que Walter Salles fizesse um filme sobre sua classe social. Mas é absurdo julgar “Ainda Estou Aqui” por não ser um filme sobre os 0.0001% ou não incluir a visão periférica sobre a ditadura. Como disse Marcelo, livro e filme são sobre sua mãe, Eunice.
Demolir ou elogiar um filme ou livro porque o criador é rico, pobre, preto, branco, mulher, gay, PCD etc. não tem sentido nenhum.
O justo é julgar a obra pela obra. Ela tem que se sustentar sem mais nada. Vale pra filme, livro, quadro, ideia, projeto de lei, qualquer coisa.
Se quem está por trás é a trans albina da Transilvânia ou o Zé Cis da Silva, fôda-se.”
POST SCRIPT
A torcida emocionada para um Oscar para “Ainda Estou Aqui” é meio boba alegre, como qualquer patriotice. Mas compreensível.
O filme vem na rabeira de anos de apoio maciço da nossa elite ao mais nocivo apologista da ditadura, e odioso inimigo da cultura, Jair Bolsonaro. Celebremos.
E que seu sucesso renda um bom dindin a Marcelo Paiva, que não fez fortuna com suas décadas de serviços prestados às artes e ao jornalismo, imagine só.
Você pode ouvir este fim de semana o nosso podcast ABFP com ele, gravado em setembro de 2021. O tema foi “música para futuras gerações”.
Em 2015, quando Marcelo publicou “Ainda Estou Aqui”, falei pra ele: “esse livro seu eu vou pular”. Perguntou o porquê.
Expliquei que minha mãe começava a mostrar sinais de Alzheimer. Ele disse “quem sabe o livro ajuda você a se preparar”. Verdade. Mas preferi não.
Agora estou pronto para enfrentar livro - e filme, que ainda não vi por pura falta de oportunidade, mas verei este final de semana.
Como Eunice, Valderez também não está mais aqui - mas está.
Muito bom, André!!
Na mosca. Irreparável. A crítica é à obra, sempre.