Vamos enterrar São Chomsky
Sigamos o conselho do ícone progressista: chega de procurar heróis
Não há intelectual com porte e prontuário semelhantes aos de Noam Chomsky desde Bertrand Russell. O boato de sua morte inspirou derramadas homenagens. Felizmente Chomsky vive, saiu do hospital para se tratar em casa, em São Paulo. É um ícone e continuará sendo, ainda que um AVC o tenha paralisado e calado.
Perder alguém como Chomsky convida à idolatria. Com jornalístico espírito de porco, te convido a assumir perspectíva oposta à babação de ovo. Sim, sim, ninguém chega aos tornozelos do gigante, mas vamos falar sobre os pés de barro do monumento?
Na área acadêmica, só crânios podem arriscar opinião. Vamos pela maioria, que reconhece a enorme contribuição do “pai da linguística moderna”, também filósofo e cientista cognitivo. E é consensual a influência de “Manufacturing Consent”.
No debate público é outra conversa. Pelo tom de muitos tweets lacrimosos e obituários precoces, Chomsky é um farol moral, muralha impermeável contra as incertezas. Um Obi-Wan, Salomão, Gandalf, um mago, sábio, gênio - e no “nosso campo político”!
Mas qual política? Pouca gente conhece ou se encanta pelo futuro anarco-sindicalista sonhado por Chomsky, ou vê alguma chance deste se materializar a partir deste nosso mundo cada vez mais interdependente. Sua grande contribuição é o histórico de cobrança rigorosa e reflexiva às barbaridades cometidas pelo seu país e seus aliados, pelo “império”.
Nem cego negará que Chomsky deu a cara a bater como poucos. Um exemplo recente: horrorizou simplismos identitários defendendo a liberdade absoluta do debate nas universidades, claríssimo contra boicotes e cancelamentos.
Valente em suas muitas batalhas, foi frequentemente criticado por desviar os olhos dos crimes cometidos pelo “outro lado”, acusação que não veio só por brucutus. Nunca foi simpático ao stalinismo, mas a crítica procede.
Como muitos combatentes à esquerda, Chomsky frequentemente enxergou com muita clareza os crimes do império americano, e não tanto os dos que a ele se opõem. Pelo retrovisor é fácil encontrar exemplos dessa ênfase e escorregadas.
Anti-sionista, gastou cem vezes mais saliva pra bater em Israel do que no fundamentalismo islâmico. Foi obtusa sua crítica à substituição no Leste Europeu do stalinismo necrosado por democracias, porque estas eram imperdoavelmente capitalistas, pró-Ocidente. Condenou a Rússia pela invasão da Ucrânia, mas muito mais EUA e OTAN, que supostamente a provocaram. Há outros casos.
Em bonita homenagem de Yannis Varoufakis a seu amigo e ídolo, uma citação de Chomsky deixa claro: tem consciência plena do papel que decidiu ocupar. “Minha prioridade tem que ser onde terei mais impacto. Ai Wei Wei tem obrigação de criticar o autoritarismo do governo chinês; se não quiser criticar o dos EUA, tudo bem. Nosso papel no Ocidente é lutar contra o autoritarismo dos nossos governos.”
Assim costuma ser a militância, avessa aos matizes de cinza. E militante ele escolheu ser. Em boa companhia, inclusive. Sartre aplaudiu Mao por anos, Hobsbawn não abandonou o sonho soviético jamais. Há similares do outro lado do muro. Intelectuais que metem a mão na merda não entram perfumados para a História.
Nem precisam. Odor de santidade é pra santinho do pau-oco. Revisitando a longa vida de Chomsky, e as tantas encrencas em que se meteu, é obrigatório a um progressista reconhecer o valor de seu combate e legado.
Mas sem admiração acrítica, por favor. Qualquer retrospecto honesto de uma vida pública precisa lidar com suas contradições e, português claro, pisadas e aprontadas.
Anjinhos só existem na fantasia dos fanáticos; é um desserviço à causa humana beatificar quem admiramos. A mais produtiva homenagem a Chomsky será sempre seguir seu conselho: “em vez de procurarmos heróis, devemos é procurar boas ideias.”
Excelente
Canonização não é mesmo saudável. Mas esses argumentos contra Chomsky são os mesmos das revistas da direita mais hidrófoba.