Sobre ódio, arte e como construir um inimigo
Estrelando Eco, Sêneca, Cuenca e um papo com psicanalistas
(Este texto e vídeo foram enviados em novembro de 2021 para os assinantes da minha newsletter. Talvez você ainda não fosse um deles!)
Os inimigos estão chegando. Estão nos muros, estão escalando, estão invadindo o castelo!
Precisamos resistir. Melhor ainda, precisamos acabar com eles!
Ou, se não for possível, pelo menos silenciá-los.
Umberto Eco me inspirou outro dia a escrever sobre esses desgraçados, os inimigos.
Eu não sabia que ia ser convidado para participar de um painel organizado, veja que finesse, pela Sociedade Brasileira de Psicanálise, o Museu da Imagem e do Som, e a Folha de S.Paulo.
E que o tema seria um inimigo perigosíssimo. Aliás, dois. O ódio. E a própria ideia de “discurso de ódio”. Que é também um ótimo negócio. E um monstrinho que mora dentro da gente, sempre pronto para irromper, faminto.
O gancho do painel foi o filme “22 de julho”, sobre os atentados de 2011 em Utoya, na Noruega. A conversa foi proveitosa.
O ponto que eu queria puxar aqui desse papo é justamente um trechinho de um outro ensaio do Eco.
Mas antes, é preciso compartilhar com você uns tweets do escritor J.P. Cuenca, esta semana.
Cuenca enfrenta uma das maiores campanhas para calar uma pessoa que o Brasil já viu. Tudo começou quando sua coluna na Deutsche Welle foi cancelada, em 2020.
Cuenca parafraseou um ditado clássico do radicalismo, do sacerdote ateu (!) Jean Meslier, lá no século 17: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado com as tripas do último padre”.
Cuenca sapecou: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal.”
Você decide se é bonito ou feio, motivo para aplauso ou repúdio, discurso de libertação ou ódio. Eu decido que ele tem direito de escrever isso. Quero ler, ouvir, saber de tudo, e ainda mais o que mais me ofende.
A Deutsche Welle decidiu mandar Cuenca embora. Normal. Direito à liberdade de expressão - absoluta, como defendo - não é garantia de plataforma, seja privada ou pública.
Também estão no seu direito os 143 pastores da Igreja Universal, espalhados por todo o Brasil, que moveram processos separados contra Cuenca. Ele explica a história aqui.
É uma tentativa de censura econômica? Claro. É muito caro se defender de 143 processos, movidos por membros de uma organização bilionária, dona de um império de comunicação.
É claro que ninguém, em sã consciência, pode realmente acreditar que J.P. Cuenca defende o enforcamento de fato de pastores evangélicos com intestinos bolsonaristas.
Fui condenado por disparar coisa parecida nos anos 90, “O Brasil não tem jeito enquanto não derem um tiro na Regina Casé”. Felizmente fui defendido pela Folha, onde saiu o artigo, que também pagou a indenização. Mau gosto? Pode ser. Incitação à violência? Não, né?
Mas o importante não é a ameaça real. O importante é o discurso, a imagem, a performance. Cada vez mais.
A gente falou disso no painel sobre “22 de julho”. O Cuenca explorou isso em alguns tweets valentes, no meio de um tiroteio de cobranças sobre a postura de colunistas, jornalistas, veículos sobre notícias candentes, incluindo a morte de Marília Mendonça. Reproduzo:
“Há alguns bons anos, o espaço de colunas em jornal no Brasil replica a lógica do fórum de internet: uma plataforma para debate. São textos que caçam cliques sobre o causo da vez ou mesmo que geram um fato novo, muitas vezes ultrajante.
Tal afronta será combatida por outros colunistas, gerando mais engajamento — comumente para o mesmo veículo que publicou a patacoada inicial. Tudo muito intempestivo e biliar (me controlo para não escrever “intestinal").
Para os donos dos cliques tanto faz publicar um texto apologista do fascismo, do anarquismo, do negacionismo científico ou a última do feminismo radical, o que importa é, claro, gerar "engajamento" (outra palavra para $$$).
Um país que já teve cronistas como Lima Barreto, Machado de Assis e Rubem Braga, hoje vê uma imprensa dominada por opinionistas sem brilho…
É triste pensar que a tradição secular da crônica em jornal, um gênero literário com raízes e especificidades tão brasileiras, tenha dado lugar a essa rinha de galos roucos, que só cantam para galvanizar as certezas de quem (ainda) os acompanha, protegidos por cercadinhos.
É um panorama bovino, sem qualquer valor literário ou histórico e, acima de tudo, chato. Muito chato.”
É. Faltou Cuenca dizer que assim é a própria atmosfera em que a informação circula, das redes sociais ao Zap, poluída ao ponto de frequentemente irrespirável, para retorno infinito dos acionistas dos gigantes digitais.
Está aí nos Facebook Papers, como bilionários determinam as regras de circulação da informação. Sem dar satisfação pra países ou cidadãos, e fôdam-se o diálogo, a sabedoria, as democracias. Porque permitimos.
O que importa para o Capital Digital (dos Zuckebergs, e também dos famosos e dos candidatos a, dos políticos e artistas e atletas, dos colunistas e, aliás, o nosso próprio Capital Pessoal) - é cada vez mais a imagem, o show, a lacração, o engajamento. Apupar, acirrar, agredir.
Li no painel sobre “22 de julho” e compartilho novamente com você agora este profético resumo do crítico Renato Poggioli, caracterizando os movimentos de vanguarda artística.
Está no livro “Construir o Inimigo”, de Umberto Eco, e ai se não descreve bem demais o que vemos e vivemos todo dia…
“As características destes movimentos eram:
- Ativismo (fascínio pela aventura, gratuidade do fim)
Antagonismo (agir contra algo ou alguém)
Niilismo (fazer tábula rasa dos valores tradicionais)
Culto da juventude
Ludicidade (arte como jogo)
Prevalência da poética sobre a obra
Autopropaganda (violenta imposição do próprio modelo e exclusão de todos os outros)
Revolucionarismo e terrorismo (no sentido cultural)
E, enfim, agonismo, como sentido agônico do holocausto, capacidade de suicídio na hora certa, e gosto pela própria catástrofe.”
Te convido a assistir o painel com os psicanalistas Roosevelt Cassola, Luciana Saddi e o seu amigo aqui abaixo…
E leia Sêneca, advogado, político, dramaturgo, filósofo estóico e suave suicida. No seu “Da Providência”, ele manda essa: “Você tem azar de nunca ter tido azar. Você atravessou a vida sem um inimigo. Ninguém jamais saberá do que és capaz. Nem mesmo você! Para você se conhecer, precisas ser testado…”