Em 1982 as Mercenárias faziam o que ninguém fazia no Brasil: pós-punk. Agressivo, abrasivo, provocativo. Cosmopolita e paulistaníssimo. Feminino e feminista. Som sem precedentes entre nós.
Tudo isso quando o punk engatinhava no nosso país. Muito menos nossa niu uêive temporona, engraçadinha, cabaço, que só se afirmaria na segunda metade dos 80. Olha só elas nessa foto de 1984, do grande Rui Mendes.
As Mercenárias tinham tudo para dar errado e deram.
O primeiro disco demorou muito pra sair; no segundo, foram estranhamente tratadas como obsoletas. O rock que demole instituições nunca teve palco neste país. Ou só em versões humorísticas, ou aguadas / coreografadas - Titãs.
A gente não prestou a devida atenção nas Mercenárias. Eu também não. Outro dia assistimos Sandra e a atual formação de sua banda. Minha primeira vez desde aqueles antediluvianos 80. Agora elas fazem perfeito sentido.
Tocaram entre o Cólera e o L7. Estavam lá o Gordo e o Scandurra. Tinha um jovem casal na faixa dos vinte anos comigo. Sandra disse no nosso ABFP que o público delas agora tem gente mais jovem ainda, 13, 14 anos. E disse outras coisas que você vai gostar de ouvir também.
Estar neste show deu a sensação de fazer parte da História. Que as Mercenárias fizeram e na época não sabiam. Tavam só lá vivendo e tocando, fazendo arte e confusão, dando murro em ponta de faca, dando errado - dando certo.
Agora elas sabem e nós também.
Dá ódio e desgosto ver velho passando necessidade. É mais odioso ainda quando o velho é um criador. Gente que se dedicou a divertir, até inspirar os outros. Que fez nossas vidas menos árduas, quem sabe iluminadas.
Acontece com gênios. Acontece à beça com quem criou como funcionário ou frila, alugando seu talento pra liquidar os boletos da semana.
Dias atrás os fãs de quadrinhos se espantaram com um post de Larry Hama, 75 anos. Contou que precisa continuar trabalhando pra pagar as contas, e que continua recebendo o mesmo fixo por página de roteiro desde o século 20.
Hama não é famoso fora da gibilândia. É o principal responsável pela criação da bilionária franquia G.I. Joe, de filmes, desenhos, brinquedos. Mas não é “o criador”, não tem os direitos autorais ou patrimoniais sobre nada. O “criador” é a Hasbro, também “criadora” dos Transformers, Magic: The Gathering, Power Rangers e Peppa Pig.
Agora é Rubens Luccheti, um dos nossos maiores criadores no universo do terror e da fantasia, indissociável de Zé do Caixão. Idoso, passa dificuldades aqui pertinho, no nosso Brasil mesmo. Não tem um milésimo dos fãs de Hama. Se puder, ajude.
Reciclei um texto antigo meu sobre os bastidores da criação de “Duna”, o livro, e estou animadão pra assistir o segundo filme este domingo. Quem não leu e não sabe como acaba a história periga assustar. E assustar do tanto que George Lucas surrupiou de Frank Herbert.
Fiz um videozinho explicando minha birra com “Ferrari”, que vi e chega aos cinemas. Enzo era artista? Era. Você jamais desconfiaria assistindo esta cinebiografia. Sua italianíssima, pagã, pan-helênica busca pelo justo equilíbrio entre prazer e perfeição se perde na tradução de Michael Mann e Adam Driver para platéias anglófonas.
Quem nasceu na velha bota traz do berço saudável desrespeito pelas ilusões da performance heróica. Incompreensível para os ianques, cujo deus demanda sacrifício por resultados rápidos, “just do it”. Até no sexo cinematográfico (com Penelope Cruz!), sempre vestido e apressado, gozo funcional e voltemos ao trabalho.
Cadê o charme e a lassidão, o apolíneo e o dionisíaco, lo Mastroianni e la Cardinale? “Traduttore, traditore”, indeed…