Jon Fosse? Nunca li. É sempre igual. O prêmio Nobel de literatura é entregue desde 1901. Li alguma coisa de 31 dos vencedores, a maioria antigões.
No século 21 os outros vencedores foram Annie Ernaux, Abdulzarak Gurnah, Louise Gluck, Peter Handke, Kazuo Ishiguro, Bob Dylan, Svetlana Alexievich, Patrick Modiano, Alice Munro, Mo Yan, Tomas Herta Muller, Jean-Marie Gustave Le Clézio, Doris Lessing, Orhan Pamuk, Harold Pinter, Elfriede Jelinek, John M. Coetzee, Imre Kertész, V.S. Naipaul, Gao Xingjian.
Se sentiu ignorante? Eu sim. Devemos estar perdendo um monte de coisa boa. Algum dia descobrirei. Ou não. Quase nenhum dos meus autores favoritos de ganhou o Nobel.
Assunto seríssimo pra mim. Escrever está acima de qualquer outra atividade artística. Aprender a escrever é aprender a pensar. Ter o que dizer é o melhor do humano. Dizer de maneira poderosa é divino.
Disse ele, que lê sem parar, não vive sem escrever, não desenha nem garrancho, e não toca nem campainha.
A maioria dos vencedores atuais do Nobel escrevem no gênero "drama realista contemporâneo". Já leio muita não-ficção, ensaios, jornalismo. Quando leio ficção, é exclusivamente por prazer. Prazer que também encontro neste gênero, que domina premiações e atenção da crítica.
Mas encontro mais em outros cantos. Inclusive em narrativa gráfica, quadrinhos.
Sobre não serem em geral nomes populares, ótimo. O prêmio prefer jogar luz sobre o que está fora dos holofotes. Não é concurso de miss ou prêmio para o melhor retorno sobre o investimento das editoras.
O Nobel não premia "o melhor escritor do mundo no ano que passou". No caso de nomes consagrados que escrevem em inglês, o habitual é premiar pelo conjunto da obra. É o caso de Pinter, Lessing e Naipaul, os únicos deste século que li alguma coisa, com Vargas Llosa (Ishiguro tentei um tijolo mas parei na metade, vou tentar um livro mais fininho).
Quando a obra é em língua "exótica", o Nobel premia um tanto o autor, e muito a literatura daquele país, continente; e quanto o autor ilumina sua cultura, sua identidade nacional. Você não vai ver autores africanos ganharem três anos seguidos, ou asiáticos, ou latino-americanos.
O que nos leva à eterna questão: e o Brasil, porque nunca ganhou, e quando vamos ganhar?
Todo ano temos bons romances de autores brasileiros, naturalmente. Mas que abrace nossa complexidade social, você me sugere alguém? Estou cego, sou preguiçoso?
De cabeça, não me ocorre um contemporâneo que dê conta do mundo além de nossas fronteiras. Ninguém que dê conta de nossa realidade única, radical, improvável. Talvez sejamos melhores biógrafos, ensaístas, cronistas, piadistas e tuiteiros que romancistas e, aliás, contistas. Mas algumas coisas, só um romance faz por você. Ou pelo seu país.
Talvez o problema seja que o típico romancista brasileiro é homem, branco, tem diploma universitário, mora no eixo Rio-São Paulo, e uns 50 anos. Donde que o protagonista de seu romance é homem, branco, tem diploma universitário, mora em metrópole.
Dos nossos autores, 36% são jornalistas. Pois as profissões mais comum dos protagonistas da literatura brasileira são, pela ordem, escritor, criminoso, artista, estudante e jornalista. E a maioria das histórias se passam no presente, ou no máximo dos anos 80 para cá.
O tema principal da literatura brasileira é, portanto, o escritor brasileiro e seu mundinho. É um coroa diletante e seu tema é a própria juventude e meia-idade, reimaginadas dramaticamente.
Este é o resumo curto e grosso da pesquisa feita pela professora Regina Dalcastagnè, da UNB. Ela analisou 258 romances de 165 escritores diferentes, de 1997 a 2012, de editoras variadas. É mostra significativa. Pressinto que mesmo hoje continue valendo, mesmo que de lá para cá haja uma valorização e busca por diversidade.
Regina conclui que não há na literatura nacional o que chama de "pluralidade de perspectivas sociais". Nossos livros não incluem brasileiros de várias cores, classes, religiões, idades. Bidu. É e sempre foi assim. Há poucos gays, velhos, deficientes, umbandistas e tal nos nossos livros.
A ausência mais escandalosa em nossa literatura, personagens negros, tem razão bem concreta. São poucos os negros nas redações, na universidade, nas posições de comando do País. O típico escritor brasileiro simplesmente não convive com negros de igual para igual.
Mas há mais discriminação nos nossos livros que no Brasil não-ficcional. Pela pesquisa, em 56% dos romances, todos os personagens são brancos. Negro, quando aparece, é miserável, bandido e, principalmente, coadjuvante.
Não estou aqui defendendo cotas pra romancista, levantando bandeiras desta ou aquela minoria etc. Aliás se multiplicam os identitários profissionais, autoras e autores cujo grande mérito é o que são, não o que escrevem.
Faz sentido que 36% dos nossos escritores sejam jornalistas. Nessa profissão não sabemos grande coisa, mas aprendemos a encaixar uma frase na outra, respeitar concordâncias, economizar nas vírgulas.
Dashiell Hammett recomendou: escreva sobre o que você conhece. Donde que temos jornalistas escrevendo sobre jornalistas. Uma vez na vida, a notícia sou eu!
Bem, tenho o exato perfil do romancista brasileiro, jornalista, cinquentão, branco e tal, e passo muito bem sem ler sobre mim. Nem em versão romantizada, e muito menos realista. Tirando esta cartinha pra você, naturalmente, minha autobiografia em formato de bilhetes.
A pesquisa de Regina explica a desconexão de muitos, e a minha, com a literatura brasileira atual. Me recomendam este e aquele novo autor nacional. Compro, leio quinze páginas e despacho pro sebo, raríssimas exceções. Ou não me pega no tema, ou no texto, ou nos dois.
E pior ainda quando o livro vira policial noir de butique, com direito a uma garota de programa e um milionário assassinado. Sai pra lá, neurótico professor universitário! Vade retro, safo repórter de jornal popular!
Em todo lugar o gênero "problemas sexuais-existenciais da classe média intelectualizada" tem longa tradição. É um gênero, como policiais, ou esses romances eróticos para leitoras. Em geral é o que garante prêmios, convites para lecionar e confete em festivais literários. É o favorito de romancistas que não vivem de escrever.
Não é problema só aqui. Em todo lugar, cada vez mais os prêmios literários vão para autores que caraminholam sobre seu mundinho particular e reciclam seus favoritos. "Influence is Bliss", resume Michael Chabon, que faz isso melhor que a maioria, e aliás começou em um curso de "creative writing".
A desgraça é quando os escritores começam a escrever para impressionar outros escritores. E isso vale também para músicos, pintores, arquitetos e qualquer atividade criativa.
No Brasil literatura é segunda profissão ou hobby. Um autor ganha dez por cento do preço de capa do exemplar vendido, e as tiragens aqui raramente passam de dois mil exemplares. Pouco importa sobre o que o escritor brasileiro vai escrever, e muito menos se vai escrever bem: meia dúzia vai ler.
E ele / ela não vai ganhar dinheiro nenhum com isso. Pelo menos impressionar os amigos tem que poder, pô!
Escrever em tempo parcial não precisa ser problema. Muitos usam bem as conexões acadêmicas e mesadinhas variadas, de fundações, esse e aquele programa governamental. Cada um se vira como pode. Mas escritor que depende do poder político e econômico se assume subalterno.
O que nossos romancistas dizem sobre nós? Menos do que precisamos. O que perdemos com esse silêncio? Muito, tudo. As exceções reforçam a regra. A cultura do Brasil é dominada pelo consenso que compensa.
Falta de tempo e dinheiro para escrever frequentemente foi bem estimulante. James Joyce, para citar o mais celebrado vanguardista do século passado, criou Ulisses num miserê de dar gosto, exilado mundo afora, casado com uma mulher que zoava suas veleidades de artista e com dois filhos pequenos pra criar.
Na ponta oposta, a fábrica de best-sellers Stephen King pariu Carrie, seu primeiro sucesso, quando labutava como zelador e morava em um trailer, datilografando até altas horas, os nenês chorando.
Podemos e devemos fazer melhor. Escrever é técnica, e escrever bem é talento e suor. Mas a prova dos nove é escrever sobre a realidade. Ainda que no formato de um romance histórico, ficção científica, horror ou humor ou o que for.
Evidente que um romance não é melhor ou pior porque se passa na Amazônia incendiada de hoje e não no gelado Saturno do século 30. O que existem são livros mais e menos verdadeiros, mais e menos ambiciosos, e mais e menos bem-sucedidos, em relação ao tema, à trama, à linguagem, ou na criação de ambientes e personagens.
Mas as urgências do Brasil criam obrigações. A ambição da ficção brasileira pode e deve ser maior. Escritores são faróis na neblina. Vivem na escuridão. Tateiam. Tropeçam. Mas apontam rumos. Sinalizam um norte. Sem eles, nos perdemos.
Cadê os escritores de que o Brasil precisa? Nossos guias, intérpretes, espelhos? Cadê o grande romance sobre nossa miséria e nossa fortuna? Não basta agarrar com toda força o tema. Tem que escrever maravilhosamente.
Quero, exijo, um romance contemporâneo brasileiro que me hipnotize e me leve para outro lugar, e me mostre o lugar onde nasci e vivo como eu sempre senti - e como eu nunca senti.
Um Defeito de Cor, da Ana Gonçalves, e Torto Arado, do Itamar Viera, são obras com perspectivas de Brasil muito interessantes. A primeira pede mais fôlego do/a leitor/a. A segunda e tipo um nocaute rápido. Mas ambas estão aí cumprindo seu papel de puxar a nossa literatura contemporânea para outros lugares e personagens
Como é libertador não ter o que indicar - livro ou autor... Mas há literatura boa, espalhada por aí, em rincões distantes. Aqui nas Terras de Rondon existe alguns (que não eu!). Sou mais editor que escritor. Quanto ao grau de representatividade local/regional ou nacional, sabe-se lá!
Por aqui, já assumimos que somos diletantes, não faremos sucesso em grande escala, mas sinto que muitas obras sobreviverão ao tempo excessivamente marcado pelo modismo e outros artificialismos.
O jeito será continuar a "lançar cartas à posteridade". É mais seguro e econômico.