Oito de abril de 1994, toca o telefone, é a editora do Folhateen, Noelly Russo: Kurt Cobain se matou. Você escreve?
Sentei, escrevi, mandei. O texto está abaixo.
Tiro colocou o ídolo na história do rock'n'roll
ANDRÉ FORASTIERI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Kurt Cobain se matou. Isso não é romântico. Não é um momento fundamental da história do rock'n'roll. Não é charmoso, não é legal, não é engraçado e não vai mudar a vida de uma geração. É, pura e simplesmente, uma merda.
Você pode ser realista e dizer que era carta marcada. Que se não fosse por uma bala agora, ia ser por heroína amanhã. Ou até que Cobain ia se autodestruir com mais sutileza: tornando-se cada vez menos criativo e menos relevante. É comum, no rock e na vida.
Seria uma conclusão bem lógica se você tivesse entrevistado Kurt durante o Hollywood Rock de 91. Ele era magro e mirrado. Parecia sujo, parecia triste, e seus olhos estavam mortos. Uma vez ou outra durante os quarenta minutos que conversamos, parecia que tinha alguém vivo ali. Mas a impressão passava rápido.
Só que realismo não é "rocker". Rock é justamente sobre a possibilidade de mudar tudo. Mudar a si mesmo e mudar o mundo –viver perigosamente, no melhor sentido do termo. Quem morre perde tudo o que era e tudo o que viria a ser. Quem se mata faz isso de propósito.
E ninguém diga que Cobain não sabia o que estava fazendo quando deu um tiro na cabeça. O safado sabia exatamente no que ia dar sua atitude, chapado de heroína ou não. Ele estava "deixando a vida para entrar na história". Duvido que num microssegundo ele não tenha pensado, "agora vai ser Hendrix, Lennon, Morrison, eu e outros menos cotados".
Suicídio é sempre um momento de supremo egoísmo. Dessa vez foi, também, um ato de traição.
Porque é bem possível que Kurt Cobain já tivesse rendido tudo que tinha para render, mas isso não vem muito ao caso. Nem vem muito ao caso se o Nirvana era uma grande banda ou não, se foi por causa deles que que o rock alternativo explodiu ou não, se Cobain era realmente um cara telentoso ou só mais um moleque caipira com uma guitarra. Enfim, nem vem muito ao caso pensar na filha que nunca vai conhecer o pai, na família, nos companheiros de banda e tudo.
Fico só pensando nos garotos em que Kurt não pensou quando se matou. Nos milhares de garotos pelo mundo inteiro que pegaram na guitarra e caíram na estrada e na vida por causa de "Smells Like Teen Spirit". Nos garotos que nunca mais vão ouvir um disco novo do Nirvana.
Dez anos atrás, vinte anos após a morte de Kurt, lancei este livro. Meu acerto de contas com o rock, improvisado e incompleto como quase tudo que fiz na vida. Está esgotado. Nunca republiquei, nunca vi razão. Tem em sebo por aí.
Fecham o livro o texto acima, junto com outros três sobre Kurt e o Nirvana e mais uma entrevista com ele que fiz pra Bizz. O dia em que o rock morreu é, claro, 5 de abril, quando Kurt deu um tiro na cabeça. O corpo foi encontrado três dias depois. A foto lá no alto é minha favorita de Kurt, tirada pelo amigo André Barcinski em 1991, em Seattle.
Trinta anos, uma década se passaram a mil. 2024 é muito diferente de 1994 e 2014. Eu sou muito diferente.
Mas meu comando para você, na última página do livro, continua valendo.
Tenho o livro e volta e meia leio, aleatoriamente, algum texto. Sempre leio algo novo.
Porra, a escrita não faz a obviedade de jogar elogios como flores em cima do caixão. O texto encarna uma certa birra pela partida precoce do Cobain, como quem diz: "Por que você foi embora tão cedo, filho da puta?" Eu criei minha personalidade musical já na decadência do rock, consumindo ídolos já falecidos como Cazuza, Renato Russo, Cobain e Raul Seixas. Garanto que seu texto também tocaria meus amigos de 20 anos atrás, quando engatinhávamos nesse mundo rebelde do rock'n roll. Para não dizer que fui contemporâneo de um rockstar no seu auge, eu pude ir ao show do Charlie Brown Jr. Bom texto!