Umberto Eco sabia de tudo. Até de inimigos
“Tudo compreender é tudo perdoar”, provocou Evelyn Waugh. É a moral dos fracos, dos cristãos, condenou Friedrich Nietzsche, a impotência que se sublima em rancor.
“Nunca esqueça, nunca perdoe”, impõe a dura regra subterrânea da Calábria, vizinha da Basilicata, terra dos meus ancestrais Forastieri. Lá se fez e faz lei pelas próprias mãos, nossos parceiros mafiosos no tráfico de cocaína despachada do porto de Santos.
Criado com doçura, por pais inspirados pelo Concílio Vaticano II, sou muito distraído pra cultivar inimizades. Aqui raiva passa rápido e amargor não acha abrigo.
Quase seis décadas no planeta, e só me lembro de uma pessoa que, como cravou Keith Richard, “se estivesse pegando fogo, eu não mijava nele pra apagar.”
Mas em algumas poucas coisas, sou igualzinho o André de 17 anos, daltônico para matizes de cinza. Sossegados também tem inimigos, apesar da deficiência de bile. Quem são?
“Os inimigos são diferentes de nós e se comportam segundo costumes que não são os nossos”, diz Umberto Eco, lembrando Tácito sobre os judeus: “Profano é para eles tudo o que é sagrado para nós, e tudo que para nós é impuro para eles é lícito.”
Que mais nos recorda Eco? Que o inimigo é feio e fede. Muitas vezes, porque é de classe inferior, aí incluindo por definição o delinquente e a prostituta, e daí chegando aos leprosos, à bruxa e além.
Lembra as terríveis caracterizações do inimigo judeu como modelo do Anticristo, por Wagner e outros. É o inimigo que chega a matar criancinhas e beber seu sangue.
Escreve Eco: “ter um inimigo é importante não só para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores - e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor. Quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo.”
O italiano questiona se seria impotente a ética, frente à necessidade atávica de criarmos inimigos. Não, mas é utopia de panacas a idealização do humano em anjinhos que tudo aceitarão fazendo coração com os dedinhos. Assim como é fantasia de rancorosos a punição severa e certeira às trangressões do diferente.
Não dá para construir uma convivência sem julgamentos, e portanto sem a punição pelo desrespeito às regras. Nem, do outro lado do espelho, é viável uma sociedade sem um mínimo de perdão, sem relevar o passado pra construir o futuro. Vale pra física e pra jurídica.
É preciso compreender, a mais bela e necessária utilização do que nos faz humanos: inteligência e empatia. É preciso temperar nossa compaixão com o rigor da razão.
Dialogar é terapêutico. Negar o diálogo pode ser higiênico. Encontrar este equilíbrio é difícil. Abraçar esta dificuldade nos faz melhores.
Essa falsa ambiguidade encontra representação perfeita, e perfeitamente confusa, como de costume, na Bíblia, de onde se extrai tudo e seu contrário. Cristo, que ordena oferecermos sempre a outra face ao esbofeteador, espanca os vendilhões do templo sem misericórdia.
E quem não quer vingança? O noticiário nos espicaça sem dó e os exemplos se multiplicam. Você pode encontrar monstros escondidos atrás de belos discursos corporativos de sustentabilidade, na COP. Nos púlpitos dourados, nos editoriais dos jornais, no grupo de zap da família e aqui na esquina.
A verdade está aí, entranhas expostas. Exige punição. Virá, não virá? Hoje, algum dia? Jamais esquecer, jamais perdoar.
Você e eu temos inimigos, gente que nos fez, nos faz, nos fará mal, se assim permitirmos. Não se incomode por ter inimigos.
Como diz minha cunhada Dione, com a precisão de professora de matemática, “quem não tem inimigos, também não tem amigos.”
LEIA
“Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais”, antologia com 15 ensaios & palestras de Umberto Eco, sempre eruditos e engraçados e italianíssimos.
LEMBRE-SE
O tempo é o seu melhor amigo - e seu mais perigoso inimigo.
(Enviei este texto para os assinantes da newsletter em outubro de 2021. Talvez você não fosse. Talvez você não lembre. Eu não lembrava!)
E que os inimigos sejam todos declarados, assumidos.
Porque de lobos em pele de cordeiro, nosso mundo particular está assolado.
Eu também não lembrava.