Mudemos nós, porque os bolsonaristas não vão mudar
Minorias motivadas mudam o mundo. Hoje elas estão do lado oposto ao nosso
A vitoriosa manifestação em defesa de Jair Bolsonaro dificilmente evitará suas vindouras derrotas. A Paulista é a Paulista, Brasília é Brasília. Pelo contrário: a Polícia Federal está juntando seu discurso como prova de plano golpista.
Mas foi uma inegável demonstração de força. O ideário e prática de Bolsonaro seguem inspirando muitos brasileiros. Quem fizer pouco das ruas cava a própria cova.
Eu estava a caminho do cinema e passei perto da Paulista, já terminado o showmício. De bater o olho, o grosso da galera era classe média, branca, mais de 40. Gente como eu. Volume impressionante, considerando as evidências contra Bolsonaro compiladas pela polícia e o desastre humanitário diretamente produto de suas ações e omissões durante a pandemia.
Pessoas como nossos conterrâneos que foram à Paulista dificilmente mudarão de posição. Em vez de tentar mudar a cabeça deles, talvez seja mais produtivo tentar mudar a nossa. Caminho pedregoso, assunto espinhoso.
A esquerda antigamente tinha um inimigo, a burguesia, e uma utopia, o socialismo, explícitos e escancarados. Hoje a esquerda se preocupa em administrar a carência, ser responsável e realista. Quem tem inimigos fidagais e propõe utopias delirantes é a direita.
Não foi à toa a forte presença da bandeira de Israel na manifestação. Bandeira que, como a do Brasil, no momento não representa mais um país ou seus cidadãos, mas uma concepção mística, excludente de nação.
O fato é que a direita incendeia imaginações e tira o povo de casa. Muita gente, neste domingo. A USP calculou 160 mil pessoas, a PM bolsonarista de Tarcísio, 750 mil. Objetivamente, todas as pesquisas de opinião dão forte apoio a Bolsonaro e a seus candidatos nas eleições deste ano. O governo atual praticamente não ampliou sua base além da minúscula margem que o elegeu.
A caminho de “O Menino e a Garça”, fiquei reparando nas simpáticas senhoras de verde e amarelo, nossas irmãs, mães, avós. Os regimes autoritários não são obra do diabo ou do acaso, mas delas. De seres humanos como você e eu. Muitos “gente boa” como elas, você e eu. Talvez a maioria?
Como Alan Moore comenta, no programa da BBC, “Comics Britannia”, explicando seu gibi, “V de Vingança”:
"Sugerimos que os nazistas não eram do espaço. Eles não vieram das profundezas do inferno. Eles eram açougueiros, varredores de rua, professores e pessoas comuns de classes sociais comuns. Eles não eram monstros ...mas eles simplesmente seguiram o fascismo, quando o fascismo estava na ordem do dia.
Eram pessoas que fizeram suas escolhas por uma razão. Às vezes essa razão era a covardia, às vezes era só querer se ajustar e evitar problemas, às vezes era uma crença genuína nesses princípios."
Sem igualar nem de longe o Brasil de 2024 à Alemanha dos anos 40 ou à Inglaterra distópica de “V”, assim continua sendo. A crença genuína, a fé, é poderosa. Fanáticos são impermeáveis aos fatos e ao diálogo.
Evitemos as tentadoras fantasias com o desaparecimento dos zelotes. Realisticamente resta concentrar esforços nos maria-vai-com-as outras, que são sempre a maioria em qualquer sociedade humana. Aí tem bom espaço pra manobra. Requer mais criatividade e habilidade do que o nosso time tem demonstrado.
Nunca foram as maiorias que fizeram o mundo mudar. Sempre minorias motivadas, organizadas, eletrizantes. Hoje, reconheçamos, elas estão do lado de lá. Invertendo o argumento de Moore, as do lado de cá também não virão do espaço sideral.
Não cabe banzo do discurso carbonário de outrora, nem de papo morto-vivo da Guerra Fria, mas não há como negar que falta arrojo, ambição e atualização neste morninho amálgama que chamamos “campo progressista”. A grande virtude dele é que é menos ruim que a alternativa. OK, mas por quanto tempo perceberemos as diferenças, e quanta diferença elas farão?
Os bolsonaristas radicais não vão mudar. Os marias-vai-com-as-outras irão para onde a esperança e as entregas concretas os conduzirem.
Mudemos nós. Sempre é tempo de mudar, porque o trem da História não tem parada final. Na sua introdução a uma edição de “Admirável Mundo Novo”, Christopher Hitchens crava sem misericórdia: “a procura pelo Nirvana, como a procura pela Utopia ou o fim da História ou uma sociedade sem classes, é em última instância fútil e perigosa. Envolve, se não exige, o sono da razão. Não há como escapar da ansiedade e da luta.”
Texto ótimo!!
Perfeito. Único adendo é que quando se fala em "Direta" na verdade estamos falando da EXTREMA DIREITA. Porque a Direta brasileira acabou. Foi obliterada por essa Extrema Direita, que é gente da pior espécie possível. Aliás, qualquer democrata decente deveria ter saudades da Direta, que afinal, mesmo não concordando com suas ideias e ideais, era democrática e minimamente esclarecida