Livre aborto, livre expressão, livre ódio
Vamos defender e atacar com raiva. É bom para a liberdade
O aborto sempre esteve entre nós.
A primeira referência que conhecemos está em um documento egípcio escrito a uns 3550 anos atrás. É o Papiro Ebers, um texto médico, onde lemos que um aborto pode ser induzido “usando um tampão feito de fibra de plantas, com um unguento que inclua mel e tâmaras amassadas”.
É esse abaixo. Está exposto na universidade de Leipzig.
O aborto sempre estará entre nós. A discussão sobre o aborto talvez esteja também sempre entre nós, “sempre” sendo o prazo de validade das religiões da Era do Bronze. Tristemente, parece longo.
Boa parte do movimento anti-aborto usa argumentos da época do Papiro Ebers. E temos no Brasil cada vez mais religiosos, e fanáticos religiosos.
Explicitei no ex-Twitter minha posição, que é mainstream em países mais justos e educados. Explodiu em visualizações, compartilhamentos e comentários. Uns a favor, muitos contra (“sua mãe devia ter te abortado”), vários só estranhando que eu considere o SUS “gratuito” (visto que todo imposto é roubo!).
Dias passada a treta da PL do Estupro, a treta não passou. Zé Roberto Toledo explicou no UOL um bastidor podríssimo da história toda: a PL foi pautada para forçar o governo a liberar uma dinheirama para o Congresso, e forçou. Deputados ganharam o seu, Lira ganhou a gratidão deles e o erário público perdeu R$ 4.5 bilhões.
E dias passada a treta, a brava Samia Bomfim apresentou um pacote de leis para assegurar acesso ao aborto legal - inclusive criminalizando o profissional de saúde que se negar a realizar o procedimento. Vamos aliás dar aqui a devida salva de palmas à combativa bancada do PSOL, sem a qual o Brasil seria ainda mais atrasado que já é.
Agora: o debate sobre a liberdade de abortar se beneficia de uma compreensão ampliada do que é liberdade de expressão.
Quem defende a legalização, ou descriminalização que seja, cita os dados de países desenvolvidos. Defende o direito da mãe decidir. Lembra questões de saúde da mulher. Argumenta que muitas são meninas e têm até risco de vida com a gravidez. Tudo muito racional.
Para estes, para nós, é odiosa a posição dos que criminalizam as mulheres que abortam.
Para quem é radicalmente contra o aborto, esta simples apresentação de argumentos do nosso campo já é “discurso de ódio”.
Para muita gente por aí, e segundo dogma inquestionável da Igreja Católica, a vida começa na concepção. No primeiro segundo aquelas celulazinhas já são uma pessoa com uma alma. Neste cenário, só louco ou criminoso defenderia o mais hediondo dos crimes: matar uma criança indefesa.
Então dependendo da visão de cada grupo, defender ou atacar o direito ao aborto podem ser encaixados como “discurso de ódio”.
Vale, com menos candor, para a discussão a respeito da descriminalização das drogas. Até da inofensiva maconha, como acompanhamos esses dias.
As pesquisas dizem que a maioria dos brasileiros é contra descriminalizar. Pra muitos conterrâneos, “a droga” é o pior dos males ou até coisa do demo.
Vale para muitos, muitos outros temas que nos dividem.
E aí, o que fazer? Debater aberta e agressivamente. Quem quiser chamar de “discurso de ódio”, fique à vontade.
Compreendo perfeitamente a bile em muitos comentários no meu tweet. Convidei essa reação. Fiz meu tweet curto e grosso de propósito. Meias-palavras são pra quem quer ser amado.
Tás defendendo então o "discurso de ódio"? Tá liberado zoar com a autoridade, a fé dos outros, o deus dos outros, a mãe dos outros?
Minha única resposta possível é “sim”. Porque não há consenso social sobre o que é mais odiento, sacrificar o embrião ou a vida da mulher grávida. A defesa radical de um direito se beneficia do ataque radical à posição contrária.
É pequena e insuficiente a liberdade de expressão no Brasil, sempre submetida a caprichos judiciais e legislativos, sempre sob ataque de censores de variados matizes.
Cabe a nós, que podemos nos dar ao luxo, forçar cotidianamente seus limites. Porque é pequena e insuficiente a liberdade no Brasil em geral. Inclusive o direito da mulher transar com quem quiser e fazer o que quiser depois disso.
Falou bonito Alexander Meklejohn, aguerrido defensor da Primeira Emenda da Constituição Americana, o mais radical documento em defesa da liberdade de expressão:
"O principal valor da liberdade de expressão é que ela promove o tipo de discussão que é essencial para uma democracia funcionar. Para serem capazes de fazer julgamentos corretos, os cidadãos precisam ser expostos a uma variedade de ideias.
A liberdade de expressão permite a eles se informar sobre uma diversidade de pontos de vista - defendidos por pessoas que acreditam neles com muita força."
Enquanto isso, nós, mulheres, temos que aguentar que legislam sobre os nossos corpos. Que lindos. Adoram defender a vida que não é gerada por eles. Falam aos gritos contra o aborto, mas não sobre a cultura do estupro. Falam que temos que aguentar tudo, mas se depois não os temos como criar, se virem! Ninguém mandou por filho no mundo. Eu quero criar o PL do pinto cortado. Falou bobagem? Corta! Sem mais...