Liberdade e justiça na corda bamba
De uma americaníssima ficção ao Dia da Mulher, a negociação possível com as prisões invisíveis
Mártir da revolução permanente e exigente, herege para socialistas de matizes variadas, Rosa Luxemburgo foi “a mais brilhante intelectual marxista”, segundo Christopher Hitchens. Não tenho estofo pra julgar mas voto tranquilo com o mestre, que tinha repertório de sobra e se dizia “luxemburguista”.
Essa era a definição de Hitch para quem exige simultaneamente os máximos de liberdade individual e de justiça social. Como Rosa, que era da Utopia mas também do dia-a-dia, reconheço que é difícil escalar os dois picos ao mesmo tempo. Talvez esticando um cabo entre os dois e se equilibrando equidistante? Missão pra quem encara uma corda bamba.
E você, de quanta liberdade abres mão em troca de segurança? Quanta amolação e injustiça topas engolir para fugir de violações piores? Quanto afrouxas seus princípios por mais estabilidade? Quanto valem seu conforto e sua paz de espírito?
A semana deu bons ganchos pra matutar sobre o tema. Começou com essa reportagem provocativa do amigo Álvaro Pereira Junior no Fantástico. É sobre El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele criou um estado policialesco e conquistou o apoio da população, porque derrubou a criminalidade no país.
Pereira levou patadas da esquerda e direita burras. Melhor atestado de bom jornalismo não há. El Salvador dá nó nas nossas certezas de bem-pensantes. Bukele parece personagem de filme de porrada ou seriado de zumbi. O noticiário desses dias contrastou o vizinho Haiti, onde o Estado implodiu e as gangues fatiam o país e seu povo. América Latrina, se dizia na nossa juventude, latrina dos ianques.
Do irreality show da América Central vamos para “American Fiction”, que ilustra com graça e bile a dura dinâmica entre a liberdade de criar, e de viver como se almeja, e a necessidade de se adequar ao “mercado”. Pouca gente assistiu ou assistirá. Seja um destes, por favor.
O filme tira um sarro danado de um certo progressismo ilustrado que muitos no Brasil importam acriticamente. Essa chatice moralista e autoritária que transforma determinados criadores e suas obras em obrigatórios, pelo tema, valores que defende, gênero / raça / nacionalidade, comportamento admirável do autor, seu passado sofrido etc.
“Ficção Americana” zoa esse novo-velho critério estético e mercadológico com muita propriedade. Amplia o papo para digressões filosóficas woody-allenescas, passeios agridoces pelas complicações do amor familiar e romântico.
A explicação está na ficha do roteirista e diretor, Cord Jefferson. É jornalista, foi editor do sacana site “Gawker”, produtor da série “The Good Place” e roteirista / script editor de outra série sofisticada, “Watchmen”, que também toca fundo na questão racial. Cord é filho de pai negro e mãe branca de familia racista, criado em uma roça brava, Tucson, Arizona. O que ele diz: “Raça é ficcional. Raça é real e irreal.” Entrevistona com ele aqui.
O que não tem explicação é como Cord conseguiu financiamento para ir tão forte contra a corrente. Está indicado ao Oscar de melhor filme e roteiro adaptado. O filme tem também indicações para melhor ator, ator coadjuvante e trilha (muito boa, da Laura Karpman, também compositora de “Paris pode Esperar”, filme da Eleanor Coppola amado pelo meu pai e por mim).
A base é um livro de 2001, “Erasure”, do escritor e professor universitário negro Percival Everett. Está na foto abaixo entre Cord e o protagonista do filme, Jeffrey Wright, que reluz.
É o primeiro filme de Cord, que merece ambos os Oscars a que concorre e dificilmente levará. Fez uma ficção americaníssima sobre os atuais limites da ficção (e não-ficção) americanas (e globais). E em profecia autorrealizável que comprova brilhantemente a tese do filme, “American Fiction” é um fracasso financeiro.
No nosso grupo HOMEWORK, no WhatsApp, uma hora lá dois camaradas comentavam a dureza que é trabalhar para clientes ou patrões brucutus ou mau-caráter. Ou empresas escrotas. Porque a necessidade impõe, os boletos tão aí, fazer o quê? Comentei o seguinte:
“Cada um de nós tem que traçar a linha no chão de onde não passará. E negociar com ela, conforme os apertos da vida vão aparecendo. Poucos podem se dar ao luxo de viver 100% de acordo com elevados princípios.
Tem coisa que a gente simplesmente decide que não vai fazer. Não porque dizer “não” vai mudar o mundo. Mas por uma questão pessoal mesmo. Tem consequências. Você sempre tem a liberdade de não ser mais filha-da-puta que o estritamente necessário.”
E como tem homem filho da puta. Perdão às profissionais do sexo - vamos chamar esses caras de “canalhas” mesmo.
Esses dias, também em HOMEWORK, várias mulheres do grupo deram depoimentos doloridos sobre assédio e até violência que sofreram de homens. Muita gente abrindo espontaneamente o coração.
Foi horrível saber o que cada uma passou. É tanta barbaridade que as mulheres passam - todas, em algum momento ou nível, nenhuma escapa. É a liberdade cerceada no que há de mais precioso, simplesmente ser o que você é, mulher. Senti um incômodo alívio por meu filho ser homem, ser poupado destes riscos. Hoje, no jornal, os dados sobre a violência contra a mulher gritam mais alto que qualquer discurso marketeiro sobre inclusão.
Escrevo essas linhas no Dia Internacional da Mulher, ainda meio assombrado pelos depoimentos das amigas de HOMEWORK. Lembro novamente da eterna Rosa: “a liberdade da mulher é o maior sinal da liberdade em uma sociedade”. E, finalmente, sobre as prisões invisíveis que construímos para nós mesmos: “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”.
Aproveitando que mencionou o Hitchens: por indicação anterior da sua newslettter comecei a ler o Inside Story do Martin Amis e tô curtindo muito mesmo. Valeu!
Muito boa a coluna! Parabéns! Abraço, Cássio