O dia de Finados existe desde o ano 998 da Era Comum. Contam que um peregrino, voltando da Terra Santa, naufragou e foi parar em uma ilha isolada. Um ermitão lhe contou que lá existia um poço cujo fundo era o purgatório. Da beirada, se podia ouvir os lamentos das almas torturadas.
O ermitão explicou que ele mesmo ouvira demônios reclamando das boas pessoas que rezavam por estes condenados. Porque as orações libertavam os infelizes do sofrimento e os levavam ao paraíso. As orações com mais poder eram as rezas dos monges do mosteiro beneditino de Cluny, o mais poderoso da Idade Média.
Quando finalmente voltou para sua terra, o peregrino fez questão de informar o Abade de Cluny (São Odilo!), que ficou bem orgulhoso e determinou que aquele dia, dois de Novembro, fosse a partir daí o dia da intercessão pelas almas do purgatório.
Incrível coincidência. Justamente a época em que se celebrava Eurásia afora os festivais pagãos de final do verão, imagine só; como o Samhain celta, origem do Halloween.
Um milênio depois o purgatório saiu um pouco de moda, mas o povo ainda acredita em vida após a morte. Para a maioria dos brasileiros, meus defuntos queridos estariam neste momento em algum lugar bem diferente do planeta Terra. Mas ainda assim sendo eles mesmos, ou pelo menos suas consciências flutuantes.
Meu pai dizia que pra ele não tinha “esse negócio de até a morte nos separe; casei com sua mãe para a eternidade". Sei lá o quanto ele acreditava de verdade nisso. Espero que muito.
Imagino a cena com meus pais carinhosamente implicando um com outro no céu. Como os conheci, no seu melhor. Não como adolescentes em começo de namoro ou como estavam nos leitos de morte, quando deles me despedi.
É bizarro que tanta gente creia nisso. Então nossos avós, pais, amigos estão por aí, no éter, na boa, despreocupados com questiúnculas materiais, quiçá olhando por nós? E quem casou duas vezes, tá fazendo menage?
Se isso fosse verdade, não haveria razão para chorarmos as perdas de gente querida, muito menos para visitarmos suas tumbas.
Afinal, aprendemos todos que a vida após a morte é bem mais agradável que a terrena (para quem segue esta ou aquela regra; quem não segue vai ser torturado pelo chifrudo; ou voltar como barata; lugares e fés diferentes têm regras diferentes). Para quem acredita nessas paradas, a morte é uma espécie de promoção no emprego. Tanto que se fala "partiu dessa para a melhor".
Considerando as informações desencontradas sobre se é melhor mesmo, quais as exatas regras para chegar lá e as barbaridades que se cometem em nome da vida eterna, é um conforto fazer parte da minoria que sabe que a morte é o irrecorrível fim.
Felizmente estou nesse grupo desde criança. É pouca gente e aumenta bem devagar. Mas inclui a imensa maioria dos cientistas, essa gente que só crê no que pode provar, explicar e reproduzir em laboratório.
Esses chatos pesquisaram, pesquisaram e hoje sabem exatamente o que acontece após a morte. Conhecem o exato mecanismo de desintegração de nossa carne, órgãos, e tudo que um dia pensamos e sentimos. Parou a atividade elétrica no cérebro, bye-bye.
Nossos corpos são material de compostagem. Nossos átomos são reaproveitados pela natureza. Alimentamos a cadeia alimentar: as minhocas, besouros e cia. que devoram nossos restos prestam utilíssimo serviço. Boa razão para ser enterrado e não cremado.
Almas, os cientistas nunca encontraram. O que não é problema para quem tem fé. "Creio porque é absurdo", explicou à perfeição Santo Agostinho, bispo de Hipona.
Ignoro se no futuro mais ou menos gente acreditará na vida após a morte. Desconfio que menos. Torço que muito menos.
Mas tenho certeza que os cemitérios continuarão. Um dos primeiros sinais de que deixamos as cavernas foi quando começamos a criar túmulos para nossos mortos.
Não resistimos a criptas, sarcófagos, mausoléus, catacumbas, dólmens, pirâmides. É talvez uma maneira de dizer adeus: está aqui meu último presente, e agora se vá, que a minha vida continua. Continua dando despesa, também; pago anualmente as covas dos meus pais e avó, que jamais visitei ou visitarei.
Felizmente desconheço data e condições da minha morte ou para quem vai sobrar a função de dar fim na minha carcaça, espero que bem velhinha e carcomida. Pode muito bem acabar em algum cemitério, onde, espero, jamais será visitada.
Pouco importa o que farão de meus átomos após a morte. Me interessa o que farei com eles a cada novo dia, até ela chegar. E os melhores dias são os livres, os feriados. Então celebremos Finados.
Quando se trata da vida, faço minhas as imortais palavras de Gaguinho:
"That´s All, Folks!"
Já ouviu meu novo podcast?
Na última sexta lancei meu novo podcast, “Lendo Entre Amigos”.
É muito simples: eu leio para você trechos de um livro muito especial para mim. Dez minutinhos com o amigo aqui enrolando a língua, arfando, comendo pedaço de palavra etc. Diversão garantida.
É exclusivo da newsletter, só dá pra ouvir aqui. Você vai receber um novo episódio a cada semana e o primeiro está abaixo. Se gostar, espalhe.
Como disse na minha última vontade, doem os órgãos para quem precisa, queima o resto ao som de Tomorrow never knows, e joga no tietê as cinzas.
O engraçado é que lido com os mortos todos os dias e, especialmente, em alguns dias da semana converso com eles (reunião mediúnica em um centro espírita e uma tenda umbandista...). Porém, não gosto de velório, nem de ir ao cemitério.
O modo mexicano de comemorar o dia dos mortos é bacana!
Lembrar dos mortos faz bem para os vivos. E lidar com a morte, com a coragem do Forasta, também!! rsrsrsrs