Como parar o Ecocídio - e fazer eles pagarem
O apocalipse ambiental ganhou uma nova definição jurídica. É hora de botar no banco dos réus os presidentes das empresas poluidoras - e dos países também
Ecocídio. Palavra precisa, provocante, poderosa. Como é possível que tivesse escorregado da minha memória? Pois tinha até reencontrar essa semana numa matéria do Guardian.
A primeira vez que esbarrei no conceito foi através do advogado, professor e autor Philippe Sands. Ele advoga em cortes internacionais como Haia. É referência na defesa dos direitos humanos. Argumentou pela Palestina este ano na Corte Internacional de Justiça.
Em seu livro “East West Street”, Sands explica como se originaram e diferenciam os conceitos jurídicos de “genocídio” e “crimes contra a humanidade” - e retrata os dois homens que os criaram.
O livro é fenomenal. Funciona sinultaneamente como estudo psicológico, análise histórica, aula-mestra de Direito, livro de memórias e thriller.
Sands vem tentando emplacar juridicamente o conceito de “Ecocídio” há alguns anos. A partir desta semana, a palavra tem um significado maior. Não é mais um conceito jurídico. É uma demanda.
Traduzo o comecinho da reportagem:
“Vanuatu, Fiji e Samoa querem que o tribunal penal internacional classifique a destruição ambiental como crime equivalente ao genocídio.
Os três países em desenvolvimento deram os primeiros passos no sentido de transformar a resposta mundial ao colapso climático e à destruição ambiental, tornando o Ecocídio um crime punível.
Numa petição submetida ao Tribunal Penal Internacional na segunda-feira, propõem uma mudança nas regras para reconhecer o “Ecocídio” como um crime equivalente ao genocídio e aos crimes de guerra.
Se for bem sucedida, a mudança poderá permitir a acusação de indivíduos que provocaram a destruição ambiental, tais como os chefes de grandes empresas poluidoras ou chefes de Estado.”
Chefes de que empresas? Podemos começar com as diretorias das 57 empresas que originaram 80% dos gases-estufa emitidos desde 2016, ano em que foi assinado o Acordo de Paris. Mais detalhes nessa reportagem do Jonathan Watts.
Empresas como a Petrobras. Uau, nosso orgulho nacional é responsável por gerar quase tanto gás estufa quanto Shell, Saudi Aramco e Chevron!
E chefes de estado como Lula. O Brasil é o sexto maior emissor de gases-estufa. País que dá subsídio pro Ecocídio tem culpa no cartório. No nosso caso, o país é acionista e dá as cartas na Petrobras, diretamente.
A conversinha de “liderança ambiental” e “transição” e “matriz energética limpa” é propaganda pura. Tão verdadeira quanto essas iniciativas dos nossos banqueiros para proteger o Pantanal, enquanto continuam financiando combustível fóssil.
Você sabe que todo ano eventos climáticos extremos causam mais e mais estragos e desgraças. Prejuízos gigantescos a cidades e florestas, empresonas e empresinhas, fazendas e sitiozinhos. Mas o dano vai muito além do financeiro.
“Ecocídio” também quer dizer isso: o assassinato massivo de humanos, mas também de animais de outras espécies - chegando à extinção de espécies inteiras. Esta apresentação da Reuters é bem explicadinha, com gráficos e ilustrações para cortar seu coração.
Você também sabe que alguém precisará financiar todos os investimentos que precisamos fazer pra ontem. Porque é urgente investir em adaptação e mitigação, para a destruição que já está contratada.
Então urge impostos massivos, punitivos, globais sob a cadeia que gera gases-estufa. E é preciso subsídios e estímulos gigantescos, transformadores, estruturantes para energia renovável. Pra começar.
Não existe a mais remota evidência de que alguma solução para a Crise Climática venha “do mercado”. O investimento em combustíveis renováveis se arrasta passo de tartaruga, o do investimento em combustíveis fósseis acelera na velocidade da luz.
Porque dá o dobro do retorno, graças a subsídios diversos e vantagens de “lock-in”. Tudo tem explicação e geralmente é dinheiro. Mas ainda que, como o Bill Gates, você confie que o mercado dará conta e a tecnologia será uma panacéia, a questão da responsabilidade pelos crimes se mantém.
Mas é pouco pagar só em grana. É preciso que eles paguem na cadeia. Porque sabem que estão cometendo Ecocídio. E gastam uma bala pra esconder isso.
Quem tem que ser responsabilizado? Quem lucrou e lucra cometendo o crime. É perfeitamente racional e justo que seus líderes e seus facilitadores e financiadores e políticos de estimação respondam judicialmente pelos danos que causam. E não só as pessoas jurídicas.
É isso que os países do Pacífico propõem. No caso deles é ainda mais urgente e dramático que no nosso, porque são ilhas e estão afundando. Daqui a pouco não tem mais Fiji, Vanuatu e Samoa.
O número de processos nesta linha está aumentando. Elio Gaspari escreveu na Folha que tem uma montanha de ações nos tribunais gaúchos, pedindo indenizações deste e daquele pelas inundações. E está aqui no indispensável Observatório do Clima: o número de processos contra petroleiras triplicou desde o Acordo de Paris. Mantenha-se informada, siga já o OC. Aqui está o site e aqui está o Instagram.
O duro é botar um preço na indenização. Por exemplo, quanto valem os rios do Brasil, que secam ano após ano ao ponto de desaparecerem? Daqui a pouco faltará luz também. Porque a água que temos disponível para gerar eletricidade caiu 30% nas últimos duas décadas.
Para não falar de um número estarrecedor: os 8.34 MILHÕES de seres humanos que morrem anualmente de doenças originadas pela poluição causada por combustíveis fósseis. É genocídio ou não é?
Conheço gente boa e progressista que argumenta o seguinte: para diminuir a miséria e a desigualdade, não podemos abrir mão do petróleo. É o exato contrário. Tentar diminuir miséria e desigualdade enquanto o Ecocídio acelera é enxugar gelo, porque ele acelera loucamente ambas. Veja o que aconteceu no Rio Grande esse ano, o que está acontecendo na Amazônia e Pantanal, visite qualquer hospital de uma metrópole brasileira hoje.
Quando eu insisto no tema “clima” (ih, lá vem o chato) já sei que rapidinho vou ouvir uma de duas respostas. “Não tem o que fazer”, e entendo perfeitamente o desânimo. Vira e mexe eu também toco o fôda-se e ignoro por uns dias o assunto. Mas não vou largar o osso. Continuará sendo tema recorrente por aqui.
Por que? Porque vejo tanta desinformação e cortina de fumaça sendo espalhada pelas empresas poluidoras, e tristemente pela maioria da nossa imprensa, que me sinto na obrigação de ir na direção contrária.
E porque posso.
A outra coisa que tem grande chance de eu ouvir num papo sobre clima, e você talvez esteja se perguntando, é: “O que fazer?” A resposta é “muito”. Precisamos fazer muito.
Precisamos fazer muitas pessoas saberem que é crime, que é Ecocídio, e estimula-las a meter a mão nesta massa de alguma maneira. Bater, bater, bater nesta tecla, hoje, amanhã e depois. Encher o saco até encher o saco.
Que mais? Precisamos identificar os criminosos, judicializar e criminalizar. O melhor lugar para bater é sempre no bolso. Meter uns CEOs e presidentes na cadeia será educativo também. Difícil, difícil. Quase tudo que é importante é difícil.
Você e eu podemos fazer muito. Não é “fazer a sua parte”, abandonar canudinho de plástico. É fazer seu pedacinho de um grande esforço coletivo.
Podemos prestar atenção. Podemos doar dinheiro. Podemos militar. Podemos usar nossas vozes, talentos, comunidades em toda oportunidade. Eu não sei fazer grandes coisas, então faço o que sei: te escrevo. E espalho por aí essas más notícias, urgência, e quem sabe também esperança.
O Brasil também precisa fazer muito. Inimaginável, mas nossa melancólica, claudicante, corrupta democracia precisa se colocar à altura do apocalipse ambiental. Porque é disso que estamos falando.
Quem garante é nosso mais prestigiado climatologista, Carlos Nobre. Tem o resuminho do que o Nobre disse aqui. Em diversas entrevistas ele repete o mesmo: o Brasil perderá 100% do Pantanal e 50% da Amazônia até o fim do século.
Como você chama isso? Da mesma maneira que deve chamar o ar pútrido que respiramos essa semana toda pelo país afora.
Ecocídio.
Será o Brasil capaz de encarar uma treta dessa? Três ilhotinhas no meio do Pacífico são. Admitir que com esse tamanho e riqueza e sendo o sexto maior emissor o Brasil não pode fazer nada é passar recibo que somos uns bostas.
Finalmente, é comum o argumento de que “não adianta o Brasil não explorar petróleo se a China e os EUA não pararem também”.
Minha resposta é que algum país teve que ser o primeiro a ter coragem de abolir a escravidão (a Dinamarca, em 1792). O Brasil foi o último. Explorou até a última gota de sangue possível os escravizados indígenas e africanos.
No genocídio do século 21, o Brasil tem oportunidade de realizar um necessário acerto de contas com a História. É um imperativo ético.
Saiba mais e faça mais, todo dia mais, e siga STOP ECOCIDE.
Ótimo texto, porém convém lembrar que além de Amazônia e Pantanal, também estamos presenciando a destruição do Cerrado, verdadeiro berço das águas brasileiro.
E é justamente por "esquecermos" este bioma que ele tem sofrido mais, tanto pelo menor espaço no noticiário tradicional, quanto pelas ainda tímidas políticas de estado no sentido de prevenir e reprimir os crimes ambientais. Saudações.