Durante muitos anos, na nossa Sexta-feira Santa era religioso comer bacalhau. Meu pai montava a bacalhoada. Eu ajudava.
Aprendi com ele. Tem que comprar lombo do bom. Dessalgar direito. Fazer um refogado antes, pra misturar com os ingredientes. A piscina de azeite causava revolta na minha mãe, mas é obrigatória.
Uma das últimas coisas legais que fizemos juntos, semanas antes do meu pai morrer, foi montar uma bacalhoada. Tenho as fotos. Nunca mais eu montei uma. Sozinho, não tem graça.
João Carlos gostava tanto de bacalhau, que uma vez inventou de emagrecer fazendo uma dieta de bacalhau. Comia bacalhoada toda noite. Dizia que era um prato leve, porque ele fazia com pouco bacalhau, e muitos legumes. Não emagreceu nada, mas se divertiu pra caramba.
Também aprendi a fazer esse tipo de bobagem com ele.
A VIDA É DOCE
Se você é criança, a coisa mais legal da Páscoa é procurar aqueles ovinhos de chocolate embrulhados em papel colorido brilhante, escondidos em lugares estrambóticos.
Se você é adulto, é esconder esses ovinhos pra molecada procurar, e assistir eles se esfalfando pra encontrar todos, e depois se lambuzarem até.
Em várias Páscoas que passei viajando, longe dos meus pais - quase todas as últimas em que eles viviam - meu pai sempre me dava antes uma caixona de isopôr, cheia de ovinhos de chocolate. Para eu esconder onde quer que a gente fosse passar a Páscoa, e meu filho e seus amigos procurarem.
Agora não tenho mais pais, e meu filho tá muito grande pra procurar ovinho de chocolate.
Fica o quê? O sabor doce de momentos felizes que jamais voltarão.
A VIDA É SACRIFÍCIO
Depois de sexo, chocolate é a melhor coisa do mundo, dizia meu velho. Graças à serotonina e à feniletilamina, o hormônio da paixão.
Meu pai aprendeu com um professor na faculdade, lá nos anos 50-60: a Medicina é uma área da Bioquímica. Quanto mais trabalhou como médico, mais concordava com seu velho professor.
Tinha uma visão de médico da vida. Sangue, hormônios, tripas, fluidos variados. Sexo!
Pesach é a festa em que os judeus celebram a libertação do jugo egípcio. É uma festa de renascimento, que é o que vem depois da morte. Pra quem acredita nessas coisas, não eu.
A Páscoa é a versão cristã. Jesus é o cordeiro que se sacrifica pelos pecados da humanidade. Morre e renasce.
A turma antigamente gostava desse negócio de sacrifício. Era um tal de matar cordeiro, boi, porco, até gente, pros deuses de antão. Até o filho de deus!
Então era assim. Na sexta, bacalhau, mas pro almoço de domingo a tradição é assar e comer um leitãozinho. Com salada, arroz, coradas e vinho. E, de sobremesa, mais chocolate. Que, claro, o neto já estava devorando desde manhã cedo.
Era assim que a gente fazia. A la mediterrânea: trágico, cômico, santo, profano. Tudo, todas as emoções na mesa.
Essa vida acabou. Mas...
A VIDA É MUDANÇA
A Páscoa, o Pesach não é só dos judeus e dos cristãos. Era e é celebrada por um monte de povos que não têm nada a ver com o Oriente Médio, claro.
Estas festas são determinadas a partir do Equinócio da Primavera. Era quando todo o povo do hemisfério Norte respirava aliviado.
Ufa, atravessamos razoavelmente ilesos mais um inverno! Tudo morreu. Mas a gente tá vivo! Ou pelo menos, a maioria de nós. E então a natureza renasce, o verde volta, as flores brotam. Um dia quero passar essa virada no Japão, para ver o florescer das cerejeiras.
Escrevi anos atrás: "Para nós que não temos fé, o sentido da morte é a vida. É minha convicção profunda de que o fim será definitivo que torna a vida tão preciosa, sua fruição premente, seu significado sagrado."
Aqui no Brasil, no Sul, é o contrário. Em março começa o outono. Aqui, a primavera começa em setembro.
Vamos combinar que agora é primavera também aqui, hora de dar adeus à morte, e dar um oi bem simpático à vida que vem. O ciclo reinicia. Sabendo que a nova vida vem, inevitavelmente com mudanças.
E uma parte crucial de lidar com estas mudanças é olhar para trás. Sem rancor. Para poder olhar para frente - com humor e amor.
(Escrevi a primeira versão deste texto em 2019, embalado pela morte dos meus pais. Sempre que chega a Páscoa a saudade deles aperta. Que a seja sua doce. E se os seus estiverem por aqui, lembre de dar uma passada, ou uma ligadinha…)
Depois do longo inverno da Pandemia estamos aqui, não sobreviventes, mas todos renascidos.
É porisso que patinamos, patinamos e não saímos do lugar: celebramos o moribundo ao invés do renascimento. Lutemos por uma páscoa em setembro.