A medida da Humanidade / CYBER + PUNK
Na decadência entrópica há sempre esperança; no absurdo, humor e redenção; na imaginação, um caminho para se importar
Philip K. Dick, 1977:
“Em meus livros, escrevi sobre mundos falsificados, mundos semirreais, alucinados mundos particulares.
Muitas vezes habitados por uma só pessoa - enquanto os outros personagens vivem em seus próprios mundos.
Nunca tive uma teoria sobre por que este tema dominou meus 27 anos como escritor. Agora entendo.
O que percebia eram realidades parcialmente manifestas, que tangenciam a mais concretizada de todas - esta, em que a maioria de nós consensualmente acredita.
Estamos vivendo em uma realidade programada por computador. A única pista que recebemos sobre isso é quando alguma variável muda, alguma alteração na realidade acontece."
1980: Jean Giraud, que assina Moebius, o mais importante criador do quadrinho francês, é recrutado para participar da criação do filme Tron.
Depois é convidado para criar conceitos para um novo filme chamado Blade Runner. Recusa: está ocupado com a animação Les Maîtres des Temps.
Absurdo - Moebius é o olhar de Blade Runner. E do Cyberpunk.
Ele é co-fundador, em 1974, e colaborador frequente da Métal Hurlant, revista que reúne os artistas mais visionários da década. METAL QUE GRITA!
1976: Giraud ilustra uma história de Dan O'Bannon, The Long Tomorrow. É ficção científica que homenageia os detetives noir dos anos 40, estilo Philip Marlowe - o futuro é uma cidade violenta.
Dan O'Bannon: animador em Star Wars, autor da história original de Alien e, anos depois, roteirista de Total Recall e Screamers, baseados em histórias de Philip K. Dick.
1977: a Métal Hurlant ganha uma versão americana, Heavy Metal.
25 de junho de 1982: estreia Blade Runner nos Estados Unidos. Fracasso: US$ 6,15 milhões no primeiro final de semana.
9 de julho de 1982: estreia Tron nos Estados Unidos. Fracasso: US$ 4,8 milhões no primeiro final de semana.
Julho de 1982, meio do meu terceiro colegial, Distribuidora Gianetti, praça da Catedral, Piracicaba: meu mais novo ídolo, Lou Stathis, escreve na minha revista favorita o obituário de Philip K. Dick: “ele nunca verá sua obra transformada em filme”.
O filme é Blade Runner. Nunca ouvi falar de Philip K. Dick antes. A revista é a Heavy Metal. Lou é o editor. É cara. Economizo todo mês dinheiro da cantina para comprar.
O artigo é ilustrado com fotos do filme de Ridley Scott, o diretor do filme que mais me assustara até então, Alien. Tenho a revista até hoje, infinitamente relida, decorada.
É o Cyberpunk, e ele faz sentido imediato para mim. PUNK + FICÇÃO CIENTÍFICA: é o futuro nas ruas. Sujo, sexy, radical, perigoso-glamuroso, urgente.
1982: Assisto Tron em Piracicaba, no cine Rívoli. Assisto Blade Runner no Cine Gazetinha, no meu primeiro fim de semana sozinho em São Paulo, para onde me mudarei em poucos meses. Tenho 17 anos.
Tron é novidade. Blade Runner é revolução.
Frankenstein punk: a criatura se volta contra o criador. A máquina conquista inteligência e vontade próprias. Pode escolher. É “humana”.
A história é velha. O filme é um furacão de frescor.
Blade Runner foi influência determinante em tudo que importou dos 80 para a frente. Foi o pontapé inicial da literatura cyberpunk.
Foi o futuro a ser desejado/desdenhado / destruído. Mudou as roupas, a música, o discurso.
Assistir a Blade Runner hoje é impossível, salvo por nostalgia - tudo o que está lá você já viu e viveu um milhão de vezes.
William Gibson:
“Os ingredientes de Blade Runner e Neuromancer são os mesmos: o tipo de quadrinho francês adulto que a revista Heavy Metal estava trazendo para os EUA.”
Blade Runner tem um único herdeiro em ambição e influência: Matrix. Seguem preciosos e necessários.
Matrix e Blade Runner e Tron são irmãos de criação; Terminator é um primo; 1984, Metrópolis, Super-Homem e Admirável Mundo Novo são avós; a família é enorme e tem muitos ramos.
Todos lidam com nossa crescente dependência da tecnologia. Com a influência disruptiva da aceleração do conhecimento. A sedução da técnica.
Como “o sistema” e como ele exige e se alimenta de nossa desumanização. Com a sedução da rendição. Com a possibilidade de fuga e de resistência.
Carta de Philip K. Dick sobre o filme Blade Runner, após ver cenas do filme que ainda não tinha estreado:
“Não é ficção científica. Não é fantasia. É, como Harrison Ford disse, futurismo... não é escapismo, é super-realismo, tão detalhado e autêntico e explícito e convincente que minha 'realidade' cotidiana se tornou instantaneamente pálida em comparação”.
1974: chapado de sódio pentatol após extrair um dente, Philip K. Dick vê Deus.
O nome de Deus é VALIS - Vast Active Living Inteligent System. Revela a Dick: a história congelou no primeiro século DC, e o Império Romano nunca terminou.
Roma é o império do materialismo e da autoridade. A humanidade foi escravizada, hipnotizada pela sedução dos bens materiais. Somente resistem rebeldes Gnósticos que lutam pela derrubada do Império. Isso e mais é VALIS.
1982 - Dick morre aos 60 anos. Lou Stathis escreve seu obituário. Eu nunca li uma linha de Philip K. Dick. Lerei oito livros nos cinco anos seguintes.
1993-1997: como editor do selo de quadrinhos adultos Vertigo, da DC Comics, Lou Stathis edita alguns dos gibis mais ousados e alucinados que já vi - Preacher, Hellblazer, e Doom Patrol, este escrito por Grant Morrison. Stathis vem de editar a Heavy Metal, Reflex, High Times. É uma das maiores influências da minha juventude.
Dez anos depois, serei eu o editor das versões brasileiras de alguns destes gibis, na Pixel Media.
1994: Grant Morrison é abduzido por alienígenas pentadimensionais no alto do BajaRat hotel, em Katmandu. Ou, pelo menos, é o que descreveu: seu corpo sendo retalhado, destruído e reconstruído com um grau mais alto de conhecimento.
Grant vê o total fluido do espaço-tempo. No dia seguinte, enche cadernos e cadernos tentando descrever o que viveu. Processo xamânico que ativa geração de sincronicidades e ocorrências estranhas.
Passará seis anos tentando fazer sentido da experiência por meio de um sigilo mágico, um feitiço em forma de narrativa gráfica. É a série em quadrinhos que acaba de iniciar: The Invisibles.
Grant Morrison: “Praticamente não li Philip K. Dick... li VALIS.”
Os Invisíveis são um grupo de rebeldes contra o super-sistema totalitário artificial criado por deuses alienígenas. Violento coquetel tecno-oculto de Robert Anton Wilson, Magia do Caos, pop e rock e super-heróis.
Conclusão de Invisíveis: os inimigos somos nós.
Ao mesmo tempo e depois: Morrison escreve alucinante sequência de histórias da Liga da Justiça. Depois: New X-Men, sobre guerra de gerações, “uma lição para os super-humanos que já andam entre nós”.
1997: Lou Stathis morre com um tumor no cérebro. Tem 45 anos.
1998: Os Wachowski, em Hollywood, buscam financiamento para Matrix: “vai ser isso, só que com atores de verdade”, explicam exibindo a animação japonesa Ghost In The Shell, de Masamune Shirow - espécie de sequência não oficial dos temas e ambientes de Blade Runner.
Grant Morrison, 2009:
“os irmãos Wachowski são criadores de quadrinhos e fãs do meu trabalho. Fui contatado antes do primeiro filme e convidado a escrever uma história para o site.
Não é coincidência que tanto de Matrix tenha sido afanado de Invisibles, argumento, detalhes, imagens. Não tenho mais raiva de que eles tenham feito milhões com um xerox do meu trabalho.
No final, fico feliz que eles tenham espalhado as ideias, mas fiquei desapontado com o segundo e terceiro filmes, que distorceram completamente os aspectos transcedentais Gnósticos que fizeram o filme original tão poderoso...
Os Wachowski tropeçaram em um teologia Católica chatíssima, o que prova que não tiveram a experiência de 'contato' que é o motor de Invisibles".
2011: Grant escreve o livro que explica a rendição da nossa época aos super-heróis Marvel e outros: "Super Gods".
2012: morre Moebius. Estreia “Cloud Atlas”, filme dos / das Wachowski inspirado em romance de David Mitchell sobre… tecnologia? Presciência? Reencarnação? Viagem no tempo?
James Cascio:
“A tensão entre as mil maneiras como nossas ferramentas nos afetam está no núcleo das discussões sobre o futuro.
Elas nos enfraquecem? Destróem nossas memórias, como defendia Sócrates? Nossa abilidade de pensar em profundidade, como argumenta Nicholas Carr? Ou nossas ferramentas nos empoderam?
Será que a tecnologia rouba nossa humanidade, ou é justamente ela que nos faz humanos?”
2016: Grant Morrison assume o cargo de editor-chefe da revista Heavy Metal.
2016: leio The Bone Clocks, poderoso romance de David Mitchell sobre invisíveis, imortalidade, crise climática.
2017: Ghost In The Shell vira filme com atores, Blade Runner ganha uma sequência. Não importam. Apropriadamente, a grande história de ficção científica do século 21 é uma série de TV via streaming: Black Mirror.
2020: Grant Morrison assume o pronome “they” e se declara “não binário, gender queer.”
22 de dezembro de 2021: com David Mitchell como co-roteirista e direção de Lana Wachowski, estreia Matrix Ressurrections.
Veja Lana e David conversando sobre o filme.
Hoje: Philip K. Dick, Dan O´Bannon, Moebius e Lou Stathis estão mortos. William Gibson, Grant Morrison, as irmãs Wachowski, David Mitchell e o cyberpunk vivem.
Lou Stathis sobre Philip K. Dick, na minha Heavy Metal de 1982:
“E de repente, você se choca com a percepção aterrorizante e repentina: a realidade não é o que parece... No universo de Dick, você não pode confiar em nada. Não só as figuras de autoridade mentiram para você - a própria realidade está mentindo para você.
Mas por mais paranóica que seja, a visão de Dick não é desesperadora.
Na decadência entrópica há sempre esperança; no absurdo encontramos humor, e redenção nas abilidades super-humanas das pessoas comuns, que lidam com circunstâncias extraordinárias. Nós podemos conseguir.
Podemos não triunfar heroicamente (quem consegue uma coisa dessas?), mas, caramba, vamos sobreviver.
Humanos sobreviverão por tanto tempo quanto conseguirem manter sua humanidade, diz Dick, e a medida da humanidade é sua capacidade de se importar.”
POST SCRIPT: 29/02/2024
A divulgação esta semana de uma série para TV inspirada em “Neuromancer” gerou papos interessantes em redes & grupos de Zap sobre utopias, distopias e tudo que elas envolvem - por exemplo, direitos trabalhistas!
Aprendi várias, especialmente com a Adriana Amaral, que é estudiosa do tema.
Adriana contou deste estudo embasbacante sobre o trabalho das mulheres em “fazendas de clique”, que já rendeu artigo acadêmico, infográfico e videozinho. Compartilhou este post da autora Ana Rusche sobre a WorldCon, grande encontro de ficção científica na China que deu pano pra manga. A Ana tá aqui no Substack.
Você pode e deve ler um artigo muito bom da Adriana sobre cyberpunk aqui.
Dei uns pitaquinhos, mais acompanhei à distância as conversas. Às vezes confusas - porque pontuadas por intervenções de versões variadas desta contradição em termos, o futurista conservador…
Me ocorreu então tirar o pó desse textão acima e republicar. É de uns anos atrás, uma espécie de cronologia afetiva do cyberpunk. Pra não achares que sou um completo vagabundo, me dei ao trabalho de “criar” as imagens que ilustram o post, usando IA generativa.
Meu primeiro prompt foi: “Create an illustration of the author William Gibson, with a cyberpunk background, on the style of the artist Moebius.” Fiz os outros no mesmo esquema, de Grant Morrison e Jean Giraud. Cada ilustração demorou menos de um minuto pra ficar pronta. Foi grátis.
O mundo mudou demais desde que escrevi o texto acima. Às vezes esqueço que vivo no futuro. É agradável e estimulante ser lembrado.
E é um horror e tiro no pé o sentimento de rendição de algumas das nossas melhores pessoas, quanto se trata de pensar o futuro. Seja político, climático, tecnológico ou só no âmbito individual mesmo.
Grandes mudanças são mais que possíveis, são inevitáveis. Elas sempre virão. A única coisa a decidir é quem será agente das mudanças, agindo para moldá-las, e quem será vítima. Ou, em muitos casos, quem se deixará autovitimizar, via avestruzice ou catastrofismo mesmo.
É urgente abrir a imaginação para futuros que o senso comum decreta impossíveis. Não porque iremos triunfar heroicamente, mas porque nos importamos...
Continuo achando o que a Lana fez no Resurrections genial, André.
Para começar devemos deixar claro que a Warner queria faturar um troco a mais e iria fazer o filme de qualquer maneira.
Sim, mesmo que fosse com o JJ Abrams.
Já imaginou? Dá calafrios, não?
Ela pegou toda a temática e imagem de Matrix que foram sequestrados pela extrema-direita e o fascismo e trouxe de volta para o sentido original.
Fez isso invertendo os plots e trocando tudo pelo meio do caminho e o mais legal, fulminando quem aparecesse pela frente.
Inclusive a produtora do filme.
Ficou nota 10.
PS: eu gostei de Cloud Atlas, da irmã e irmão Wachowski.
Sim, naquela época só a Lana tinha feito a transição, Lilly foi um pouco depois.