Um caminho seguro para o jornalismo e a democracia
Como desnormalizar o anormal. Estrelando Hitler, Marçal, Nunes e Leão Serva
“Por que continuamos chamando figuras como Trump, Bolsonaro ou Marçal para debates?”, pergunta Leão Serva em artigo na Folha. Ele próprio poderia responder. Era diretor de jornalismo da TV Cultura em 2022, quando o canal promoveu debate entre Bolsonaro e Lula.
Não responde. Mesmo tendo presidido o debate da cadeirada. Mesmo comparando essas figuras com Adolf Hitler.
Leão: “Por que normalizamos candidatos que ameaçam a democracia? Como Hitler fez com os judeus, Trump inventa histórias falsas sobre imigrantes. Bolsonaro afirmou que "índios" são quase humanos, propôs guerra civil para matar 30 mil "comunistas" e defendeu a morte do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Por que recebemos essas figuras em nossos fóruns de debate?”
Boa questão. Leão se pergunta, se pergunta , mas não bate o martelo. Sugere - sem propôr - que a imprensa vete a participação de certos candidatos nos debates. É contra a liberdade de expressão, de imprensa? Talvez queiras entender melhor como Leão pensa, assistindo seu papo com a Flávia Tavares, do Meio.
Não lhe faltam experiência em jornalismo e política. Leão é veterano da Folha, iG, Lance e mais. Desde 2013 é professor de ética e jornalismo opinativo na ESPM. Hoje é diretor internacional de jornalismo da TV Cultura, mantida pela Fundação Padre Anchieta, entidade instituída e mantida pelo governo do estado de São Paulo.
Foi antes diretor de jornalismo na TV Cultura. Entre 2019 e 2023, na gestão João Dória, de quem Gilberto Kassab foi chefe da Casa Civil. Antes, serviu por quatro anos como coordenador de imprensa nas gestões de José Serra e Kassab.
Kassab fez campanha em 2022 por Bolsonaro. Hoje é Secretário de Governo e Relações Institucionais do Estado de São Paulo. É o homem forte de Tarcísio de Freitas.
Ambos apóiam Ricardo Nunes para a prefeitura de São Paulo. Nunes, face oficial do bolsonarismo nesta campanha, tem muito mais perguntas incômodas a responder do que Marçal.
Por exemplo, como o prefeito explica que 223 dos 307 contratos sem licitação que sua gestão contratou tenham indícios de combinação de preços entre as empresas que entraram nas concorrências? Foram R$ 4,3 bilhões gastos nessas obras. Esse é só um item de uma longa lista, cujo item mais recente e escandaloso é a Máfia das Creches - leia a reportagem da Agência Pública.
O artigo de Leão Serva compara Marçal a Hitler e não cita Nunes, seu opositor direto no caminho para o segundo turno. Resultado: normaliza Nunes. Que é o candidato de Bolsonaro. Que o próprio Leão também comparou a Hitler.
Em tese, barrar dos debates os Marçais da vida pode te soar medida higiênica. Mas se impõem perguntas incômodas: porque não barrar também os “moderados” Nunes?
Quais critérios para o veto serão usados? O lugar do candidato nas pesquisas? A ficha criminal do sujeito? Os interesses do veículo que promove o debate, e dos seus anunciantes? Se o candidato é mais brucutu, ou tem padrinhos menos poderosos?
O artigo de Leão teve réplica de Joel Pinheiro da Fonseca. O título diz tudo e diz errado: “A imprensa não é nem pode ser tuteladora da democracia”.
Joel separa o inseparável. Imprensa e democracia existem sempre e somente em relação de codependência e retroalimentação. São ambas imperfeitas e indispensáveis. Avançam e regridem bailando no mesmo compasso, simbióticas.
Aí está o ponto. É pobre discutir que candidatos serão chamados para os debates. O que importa é conversar sobre o quanto haverá de checagem do que eles lá dirão. Se haverá questionamento instantâneo, com autoridade, por parte da imprensa. Foi o que aconteceu recentemente no debate nos EUA, com Trump levando várias enquadradas constrangedoras dos jornalistas.
Mas vai muito além dos debates. A questão chave é o quanto haverá de reportagem investigativa para descobrir o que os candidatos e seus patrocinadores querem esconder. E levar essa informação ao cidadão de uma maneira clara, consistente, contundente. Para desnormalizar o anormal.
Agora, o X da questão: de onde virá a grana pra isso?
Com as fontes de financiamento do jornalismo minguando rapidamente, ele é cada vez menos crítico, potente e prestigiado. A sociedade vai se acostumando com menos cobrança, menos reflexão, menos jornalista enchendo o saco dos poderosos. E por consequência, menos disposta a valorizar e defender o jornalismo.
Quantas pessoas à direita e à esquerda você conhece que simplesmente “não confiam” na imprensa? E o quanto você confia, a esta altura do campeonato?
A sobrevivência das democracias passa em grande parte por aumentar o financiamento alternativo do jornalismo. Porque da publicidade é que seu sustento não virá. O Flow é das poucas exceções e todas confirmam a regra.
Na verdade, muitos donos da imprensa já embolsam bastante dinheiro público. Nunes investiu uma bala em “branded journalism”, publicidade embalada como notícia, nos maiores veículos paulistanos. Leitor e eleitor não sabem disso.
Sustentar jornalismo não é gasto, é investimento. É a melhor vacina contra desmandos e desvios. Existem vários modelos para isso, inclusive o da TV Cultura, que merece mais verba e autonomia. Todos exigirão transparência e fiscalização, como qualquer uso do dinheiro do contribuinte.
Quanto mais investirmos em jornalismo crítico e independente, mais retorno para a sociedade. O resultado será vivermos em uma democracia mais democrática, com jornalismo - e jornalistas - melhores. Não há caminho mais seguro.
(E falando em financiar jornalismo…
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Reflexão de extrema importância. Todos falamos mal de políticos. E a imprensa? Arrisco uma aposta na cabeça (como dizem os bicheiros) que se a cadeirada não tivesse ocorrido na TV Cultura, a emissora faria como todos os veículos estão fazendo - alternativos e de grande porte : marcando debate para lacrar. A preocupação com o povo é apenas pela audiência, e nada pela proposta que cada candidato tem para uma cidade que sangra.
Poucos têm disposição e coragem para "arriscar a própria pele" (conforme Nassim Taleb). Independência e arrojo é artigo cada vez mais raro.