O estranho mundo de John Cassaday
Celebrando um artista que nos fez acreditar em heróis e vilões - e além
“Planetary” é uma aventura pela cultura pop-pulp do século 20, em que nos guiam arqueólogos do impossível. Criação do escritor Warren Ellis e do desenhista John Cassaday.
Tem muito quadrinho velho por aí com meu nome no expediente, das editoras Conrad, Pixel, Tambor, lançados principalmente entre 1999 e 2012. Poucos me dão orgulho igual. O pôster abaixo não passa a ideia completa, mas é por aí.
John era um bom desenhista de comics. Aliava a isso paciência para pesquisar e disposição para o design gráfico. Era uma exceção preciosa: simultaneamente dos melhores pra conceber e executar uma capa, para desenhar uma página dinâmica, e para nos seduzir do começo ao fim em uma história completa.
E ele fazia você acreditar em heróis. E em vilões. E em mundos além de heróis e vilões, como o de “Planetary” - muito importante.
Ilustrador requisitado, acabou produzindo menos HQs do que os fãs gostariam. Aqui tem muitos exemplos pra você conferir, junto com depoimentos dos colegas. Os elogios e lembranças não param de chegar. Parece que era muito boa gente, além de boa-pinta, como vês acima.
John me deu outra alegria inesquecível como editor. É dele o único gibi que publiquei com o meu herói favorito da infância. Fizemos questão de lançar em formato gigante na Pixel. Hei Odair Braz Jr., hei Cassius Medaudar, hei André Martins - lembram dessa?
Tem por aí nos sebos da vida.
O camarada Heitor Pitombo entrevistou o artista quando ele visitou o Brasil. Saiu na revista “Mundo dos Super-Heróis”. John também desenhou muitos heróis famosos, do Capitão América e X-Men a Star Wars a Zorro. Heitor gentilmente cedeu a entrevista para eu republicar aqui - segue abaixo. Siga Heitor no Instagram .
John nos deixou com injustos 52 anos, levado pelo câncer. “Planetary” tinha um slogan que sempre me volta à memória e frequentemente repito: “It´s a strange world. Let´s keep it that way”.
Nada mais estranho que a morte. Ainda mais a morte de alguém que admiramos e teria um futuro de brilhantes contribuições a compartilhar com a gente.
Bem, também é estranha a arte, e pouco neste mundo sobrevive como ela. Para velhos fãs de gibi, para sujeitos como eu, John Cassaday é imortal. E vamos manter assim.
John Cassaday e Heitor Pitombo
Escalada para o sucesso
John Cassaday conta como passou a ser considerado um dos quadrinhistas mais elogiados das últimas duas décadas
POR HEITOR PITOMBO
Planetary, X-Men, Star Wars e Capitão América são algumas das séries que puderam contar com a inspirada arte de John Cassaday. Esse autodidata nascido em 1971 sempre sonhou em trabalhar com quadrinhos e precisou enfrentar uma longa trajetória até conseguir entrar no mercado.
Antes de atingir seu intento, trabalhou na construção civil, vendeu discos, dirigiu um telejornal e até foi balconista do McDonald’s. Só em 1995 o jovem aspirante começou a fincar seus pés nos quadrinhos por intermédio de pequenas editoras, nas quais desenhou séries obscuras como Flowers on the Razorwire e No Profit For The Wise.
Ainda era muito pouco para Cassaday, que viu sua sorte mudar na San Diego Comic-Con 1996, quando seu portfólio chamou a atenção de artistas tarimbados. Logo, engatou trabalhos na Dark Horse e, em pouco tempo, chegou às poderosas Marvel e DC.
Entre os maiores sucessos de Cassaday estão a série Planetary (desenvolvida entre 1999 e 2009 com seu grande amigo Warren Ellis), uma fase curta e memorável do Capitão América (em 2002, em parceria com John Ney Nieber) e a revista Astonishing X-Men (na qual ele e Joss Whedon viraram de cabeça para baixo o universo dos mutantes entre 2004 e 2008).
O artista também ganhou alguns prêmios Eisner (o Oscar das HQs) e colecionou outras indicações. Nesta entrevista exclusiva, John Cassaday fala sobre esses trabalhos e outros assuntos relacionados à sua carreira.
PARA COMEÇAR, UMA CURIOSIDADE. VOCÊ CHEGOU A TRABALHAR EM UM TELEJORNAL. COMO FOI ISSO?
Quando eu estava na faculdade, fui diretor técnico do jornal televisivo local. Era um noticiário modesto transmitido por uma pequena emissora no Texas, mas foi um bom trabalho para mim nesse período.
Já havia tido experiências menores numa loja de discos e no McDonald’s, de modo que trabalhar com jornalismo na TV foi muito divertido. Eu me limitava a apertar botões, dar deixas para o âncora começar a falar, ou apertar o “play” para a entrada de um tape. Lidava com um pouco de edição de imagens também.
ESSA VIVÊNCIA TEVE ALGUM IMPACTO NA SUA CARREIRA DE QUADRINHISTA?
Foi o primeiro trabalho na minha vida em que eu tive um pouco de autoridade e, por conta disso, precisava dialogar com várias pessoas para chegarmos a um produto final. Foi a primeira vez em que me senti como parte de uma equipe. Da mesma forma que veio a acontecer quando passei a trabalhar com quadrinhos, em que tinha que trocar ideias com roteiristas, coloristas, editores... Em suma, aprendi a falar com outras pessoas e obter o que eu queria e vice-versa.
SEU PRIMEIRO TRABALHO DE VULTO NOS QUADRINHOS FOI COM A PERSONAGEM GHOST, PARA A DARK HORSE. COMO VOCÊ FOI PARAR LÁ?
Sempre amei quadrinhos e estava sempre desenhando. Contar histórias era algo que eu sonhava fazer. Cresci no meio do nada, no Texas, e tinha que inventar brincadeiras. Por isso, comecei a produzir meus próprios gibis. Antes disso já escrevia, desenhava e também lia bastante coisa.
Tive que começar a me virar quando fiz 16 anos, pois saí de uma cidade pequena e fui para uma menor ainda, onde não conseguia mais comprar minhas revistas favoritas. Passei cinco anos um pouco desligado dos quadrinhos. Isso durou até meados dos anos 1990, quando comecei a acompanhar algumas séries com
mais frequência. Sin City do Frank Miller e Hellboy do Mignola, entre outras coisas interessantes, me trouxeram de volta.
MAS E QUANTO À CARREIRA PROFISSIONAL?
Alguns anos depois, em 1996, fui à minha primeira San Diego Comic-Con com um portfólio... Eram umas quatro páginas com cenas de ação. Fui mostrando esse material para algumas pessoas até que conheci um artista que trabalhava para a Dark Horse, que praticamente me pegou pela mão: Chris Warner.
Ele também fazia parte do staff da editora, e era um sujeito incrível que foi muito bacana comigo. O cara colocou meu portfólio nas mãos dos bam-bam-bans da Dark Horse, que me contrataram na mesma hora. Foi assim que consegui fazer minhas primeiras capas para Ghost.
E DEMOROU MUITO TEMPO PARA QUE VOCÊ TIVESSE CACIFE PARA TRABALHAR NA MARVEL E NA DC, AS DUAS LÍDERES DO MERCADO?
Não. Um mês depois a coisa já estava andando. As amostras que eu levei para San Diego também foram parar nas mãos de Mark Waid, que as mostrou para o pessoal da Wildstorm e da Marvel. Rapidamente elas caíram nas mãos dos graúdos da DC. Em coisa de três ou quatro meses, comecei a receber ligações das três editoras.
FALE UM POUCO SOBRE A CRIAÇÃO DE PLANETARY, COM WARREN ELLIS. COMO VOCÊS CHEGARAM A ESSE CONCEITO DE SUPER-HERÓIS “MAIS HUMANOS”?
Essa seria uma pergunta mais indicada ao Warren. Posso dizer que começamos a trabalhar juntos para uma minissérie que sairia pela [editora] Caliber. Logo ficamos amigos e passamos a conversar muito pelo telefone, falando do quanto gostávamos um do trabalho do outro. Só que bastou eu desenhar a primeira edição inteira da minissérie, que comecei a ver que não ia dar pé.
Marvel e DC estavam nos enchendo de trabalho e decidimos dar um tempo no trabalho da Caliber, que foi abandonado de vez. A amizade, contudo, não acabou. Um dia, Warren escreveu um roteiro... não sei se foi para mim, mas quando caiu na minha mão... aquilo me deixou maluco! Era Planetary. Era como se ele tivesse lido a minha mente, tirado coisas de dentro e colocado nesse roteiro. Fiquei louco para começar a trabalhar.
NA SUA OPINIÃO, O QUE PLANETARY ACRESCENTOU AO GÊNERO?
Tudo se deve ao talento de Warren de pegar a realidade do que seria a vida de um super-herói, de como esse tipo de personagem deveria ser, e injetar nele um componente humano. Nem todo mundo possui a mesma firmeza de um Superman ou de um Capitão América. O que uma pessoa faria se tivesse superpoderes de fato? Falei com Warren sobre isso, até porque gostava da maneira como ele escrevia histórias de super-heróis em outras revistas.
O engraçado é que ele não era fã dos supers quando era mais novo, por isso acho que Warren sempre teve uma visão de fora da coisa. Planetary meio que ajudou a lançar uma luz nova sobre esses ícones, os personagens arquetípicos com os quais muitos de nós crescemos. Quando vemos um e outro personagem com esse ou aquele problema, percebemos as diferentes matizes das quais Warren se valeu e que deram a esses heróis uma sensibilidade renovada.
SUA PASSAGEM PELO TÍTULO ASTONISHING X-MEN RENOVOU NÃO SÓ OS MUTANTES COMO O UNIVERSO DOS SUPERHERÓIS, ALÉM DE TER REPRESENTADO UM AFASTAMENTO DEFINITIVO DA MALFADADA ESTÉTICA DA EDITORA IMAGE, QUE IMPERAVA NOS QUADRINHOS AMERICANOS DESDE OS ANOS 1990. COMO VOCÊ VÊ HOJE ESSA SUA CONTRIBUIÇÃO?
Boa parte do crédito deve ir para Joss Whedon, um roteirista espetacular. Ele não escreve histórias de super-heróis se baseando na prosódia que se espera deles, mas imaginando como os X-Men realmente se expressariam. Ou seja, eles falam como se fossem seres humanos poderosos que vêm de lugares diferentes.
Quando nos convocaram para fazer os X-Men, queríamos que a revista fosse mais acessível. Na época, eu não lia gibis de mutantes há um tempão, pois não sabia por onde começar. Havia uns cinco ou seis títulos diferentes e todos se completavam. Você lia só um e não entendia o que estava acontecendo, pois não acompanhava os outros.
Quando fizemos Astonishing, não miramos no fã inveterado de mutantes, pois sabíamos que ele estaria conosco. O que queríamos era fazer com que nosso trabalho chegasse aos novos leitores que nunca haviam lido uma história dos X-Men. E também àqueles que os haviam abandonado há tempos.
Claro que havia um ou outro easter egg para os mais fiéis, mas nosso intuito era fazer com que qualquer leitor pegasse o número um e entendesse tudo que estava acontecendo.
NAQUELA ÉPOCA VOCÊS CHEGARAM ATÉ A CRIAR ALGUNS MUTANTES NOVOS, NÃO É?
Não foram tantos assim. Joss inventou alguns personagens secundários porque queria criar uma ou outra situação específica para os mutantes tradicionais. Esse tipo de coisa dá uma certa dinâmica para a história, até porque os personagens mais conhecidos trazem consigo algumas limitações – nem sempre é fácil matar um herói já estabelecido, por exemplo. Por isso, é legal introduzir um e outro sujeito com o qual possa acontecer qualquer tipo de coisa, mesmo que seja em uma virada de página.
O QUE O LEVOU A TRABALHAR COM O CAPITÃO AMÉRICA?
Sempre fui muito fã dele. Enquanto eu crescia, foi bom saber que havia um herói que sempre fazia o que era certo, independente do que custasse e de como ele seria visto. Fora que ele tinha o traje mais bem desenhado dos quadrinhos – esqueça esse negócio de bandeira americana. A maneira como ele foi criado por Joe Simon e Jack Kirby nos anos 1940 poderia intuir que o seu visual ficaria datado com o tempo, mas trata-se de um traje que, ainda hoje, se destaca.
FALE UM POUCO SOBRE A SÉRIE JE SUIS LEGION (2004-2007). QUAL FOI A SUA MOTIVAÇÃO PARA TOCAR ESSE PROJETO?
A editora Les Humanoïdes Associés me ofereceu esse trabalho e depois tivemos uma reunião em que me foi dito que a trama girava em torno de uma jovem romena superpoderosa que podia decidir o destino da Segunda Guerra a favor dos nazistas.
Era algo que, com certeza, nunca cheguei a ver antes numa HQ. Na época, eu estava muito envolvido com super-heróis, desenhando Planetary e começando a trabalhar com os X-Men. Era algo que me deixou com uma certa comichão para pegar... e não sabia se tinha condição de encarar a empreitada. Mas como era algo inédito para mim, pensei: “Vamos fazer isso acontecer.”
QUAIS AS MAIORES VIRTUDES DOS ROTEIRISTAS COM QUEM VOCÊ TRABALHOU?
Tive muita sorte de ter sido parceiro de caras como Warren Ellis e Joss Whedon, sem contar Jason Aaron na nova série em quadrinhos de Star Wars. Mas sempre procuro trabalhar com roteiristas que têm uma certa pegada. Saber quem está ao seu lado é importante, realça o sentido de colaboração.
JÁ QUE VOCÊ CITOU STAR WARS, QUAL É A SUA LIGAÇÃO COM ESSE UNIVERSO?
Eu tinha uns seis anos quando vi Star Wars pela primeira vez no cinema. Isso está no meu DNA. Fazer parte do time que produz as revistas dessa nova linha é demais.
Cresci lendo a revista que a Marvel publicava nos anos 1980 e acompanhei as adaptações em quadrinhos de O Império Contra-Ataca e de O Retorno de Jedi. Nessa época, você sabe, o tempo passa muito devagar. De modo que eu adorava a série.
Quando soube que a Marvel havia recuperado o direito de produzir os quadrinhos [isso ocorreu em 2015] e que haveria uma nova revista com histórias passadas no universo criado pela Lucasfilm, não tive como recusar o convite para trabalhar nessa empreitada.
Sabia que teria que mexer com os personagens clássicos que eu amava, como Luke, Han, Leia... Era como poder brincar com todos os brinquedos da minha caixinha (risos).
.VOCÊ FOI UM DOS ARTISTAS CONCEITUAIS DO FILME WATCHMEN, DE 2009. COMO FOI ESSE TRABALHO?
Ajudei a desenvolver os trajes de uma meia dúzia de personagens. Foi divertido e não foi algo que me sacrificou muito.
As conversas com Zack Snyder ao telefone foram divertidas, e elas não se restringiam a Watchmen, até porque contemplavam o universo dos super-heróis no geral. Mas ele queria ver como eu iria desenhar os personagens do longa. Fiz alguns esboços, discutíamos, ele falava do que gostava e do que não gostava... Daí eu dava uma garibada no que Zack achava que podia melhorar.
Criei algo em torno de cinco artes finalizadas mostrando como eu via certos personagens. Mesmo assim, eu achava que tudo tinha de partir do que Alan Moore e Dave Gibbons criaram nos quadrinhos. Tudo já estava lá.
Se eu tentasse desenhar os personagens pegando pela memória, seria daquele jeito que eles ficariam. Fiz poucas modificações, como dar ao Comediante um cinto levemente diferente. Não havia muito o que fazer, na verdade. Eu e outros artistas demos algumas ideias, e delas Zack pinçou uma ou outra coisa.
VOCÊ PODE SER VISTO COMO UM ARTISTA DA VELHA ESCOLA, QUE PREFERE TRABALHAR COM LÁPIS E NANQUIM EM VEZ DE RECORRER AO COMPUTADOR. QUE VANTAGENS HÁ NISSO?
Eu trabalho de vez em quando no Photoshop, mas não gosto de finalizar meus desenhos digitalmente. Claro que eu faço alguma coisa no computador eventualmente, mas 90% do que produzo é no papel. Eu me divirto muito rabiscando.
DÁ UM EXEMPLO DE ONDE PODEMOS VER ESSES 10%.
Não vou contar não (risos).
Que tristeza, Andre. 😞
Planetary é muito boa e juntamente com Transmetropolitan me fizeram ficar vidrado no que o Ellis escrevia (mais ou menos como Tynion fez com The Woods e Memetic e me fez ficar viciado nele também).
E a arte dele era de outro mundo.
52 anos, nasceu no mesmo ano que meu irmão.
Que coisa.