Como não entrar para a História da Arte
A pintura é só cenário em “A Musa de Bonnard”, mas o filme convida a um encontro com os desimportantes, valiosos Nabis
“Eu gostaria de chegar aos jovens pintores do ano 2000 como se pelas asas de uma borboleta.”
Pierre Bonnard em 1946, meses antes de sua morte
“Nabi” vem do hebreu, aparece no Corão. É aquele que tem um canal direto com a divindade, que fala em seu nome, que traz notícias do amanhã. Traduza por “profeta”.
Nome muito mal escolhido pelos Nabis, grupo de artistas que decididamente não anteviram o futuro da arte. Os Nabis eram do seu tempo e nele ficaram. Eram da França fin-de-siécle, embora alguns tenham vivido por mais muitas décadas.
Eles não foram um grupo coeso por muito tempo, mas são sempre lembrados coletivamente. Se você olhar as principais obras de quando eram muito unidos, não vai identificar tão facilimente elementos em comum entre eles.
Embora houvessem, por uma década ou pouco mais. As cores marcantes; a visão de Gauguin; algum simbolismo; os instantâneos dos interiores, os flashes da vida na rua; os contornos marcantes; a forte influência das artes gráficas e gravuras japonesas, os ukiyo-e.
Pierre Bonnard
Em 2024, é fácil ignorar os Nabis. Nenhum deles quebrou radicalmente as convenções do seu tempo ou possuía um estilo inconfundível. Não dá para agrupa-los dentro de nenhum desses grandes grupos que a crítica gosta - pós-impressionistas, talvez, mas isso quer dizer pouco.
Seus quadros eram figurativos, às vezes na fronteira do abstrato e do assombroso. Não tinham o ataque Dada ou a explosão surrealista, que os substituiriam com facilidade nos holofotes. Nenhum foi radical como Picasso ou Kandinski ou é reconhecível como Dali e Miró.
Os Nabis não foram gênios incompreendidos e isolados nem se sacrificaram por sua arte. Pintavam quadros, mas também davam outros pulinhos pra pagar as contas: faziam gravuras, ilustração pra revista, anúncio para champanhe, design de abajur e jogo de louça, cenário para peça teatral e retrato de encomenda pra ricaço.
Uns Nabis foram mais místicos, outros bem práticos; mais conservadores ou liberais. Eles não foram perseguidos, não cortaram as próprias orelhas e não morreram jovens.
Pra completar eram homens, brancos, europeus e viveram vidas razoavelmente comuns. Com um padrão de vida razoável e as alegrias e tristezas na média de seus conterrâneos.
Considerando tudo isso, é razoável que eles não apareçam com destaque na História da Arte, com maiúsculas, como a vemos em 2024. Estão no canône da pintura, mas num modesto puxadinho. Recebem lá suas exposições; são raros os quadros da turma vendidos por grandes cifras.
Os Nabis são demodé.
Marthe Bonnard
Ainda que você goste de pintura, é bem possível que não conheça os nomes Vuillard, Denis, Ranson ou Serúsier. Não é vergonha nenhuma. Estou aprendendo sobre eles. Me pegaram tem dois meses e não me soltam.
Especialmente Felix Valloton, por enquanto meu favorito. Pela assumida japonesice, pelo olho jornalístico, pelo humor e pela política, por prefigurar o surrealismo, por seus retratos de portas enigmáticas, por incorporar muitas mudanças de estilo e interesse em uma vida só.
Por que os Nabis me pegaram?
Os artistas que importam não são os que foram importantes na sua época. Ou os que permanecem importantes desde então. Ou os assim considerados por nossos contemporâneos. Ou os que serão importantes para sempre, o julgamento que só o futuro dará.
A arte valiosa é a arte que me agarra e não me deixa escapar.
Agora ficou fácil se encantar com o mais conhecido dos Nabis, Pierre Bonnard. Porque estreou no cinema um filme sobre ele e sua eterna modelo e amor, Marthe.
É animado e sensual de uma maneira francesíssima, e mais leve do que o poderoso romance deles merece. O filme capricha nas cores e Cécile de France humaniza maravilhosamente Marthe. Não é nenhuma obra-prima, o que orna, considerando seu tema.
Se curtires, você talvez queira pesquisar um pouco sobre Bonnard. Aviso já que “ele só quis pintar coisas felizes”, como explicou uma vez seu sobrinho, o que com frequência eram nus, naturezas mortas e paisagens campestres. Alerto também que Picasso o detestava e sapecou “o que Bonnard faz não é pintura”.
Mas Alfred Jarry, Apollinaire, Matisse e Monet admiravam Bonnard - pas mal.
Seu próximo passo será ler “Mantendo o Olho Aberto”, livro de ensaios sobre pintores escrito por Julian Barnes, de onde tirei as citações do parágrafo acima. Barnes, romancista inglês de primeiro time, safra 1946, escreve sobre pintura sem jargão nem afetação. O livro também tem textos sobre os Nabis Vuillard e Valloton, e outras figuras mais badaladas, de Delacroix a Cézanne a Lucien Freud.
Tem edição brasileira por R$ 35,00.
Depois quem sabe decidas comprar essa edição do Senac, com 21 obras dos Nabis para emoldurar. Visitar virtualmente essa ambiciosa exposição sobre ele em Melbourne. Ler essa furiosa defesa de Bonnard de 2002, e os quatro artigos que a acompanham.
A história da arte, nossa história com a arte, não tem fim.
(Já ia esquecendo: “Nabi” em coreano significa “borboleta”.)
Pelo q se pode avaliar da pessoa Picasso, pelo menos, ser um dos top of mind, se não requer, no mínimo é facilitado por um caráter egóico e competitividade insana. Talvez o grupo d artistas Nabi, menos faminto de fama, não seja hj tao conhecido, mas pode ter instituído um modo de não adoecer em época de turbulências e transformação, que é não tentar correr atrás da época através da arte. Assumir a arte como ofício, sem vergonha disso (uma inexplicável vergonha, mas q existe).
Na foto do texto, Marthe se parece muito à Mia Khalifa.