Eu pensei em três temas diferentes para escrever meu artigo semanal pra você. Ficarão para semanas vindouras.
Porque não te escrevi nada. Minha volta das férias foi tomada por obrigações e burocracias urgentes de naturezas variadas. E uma certa desconcentração, inevitável solavanco na retomada à rotina.
Férias é bom porque o seu tempo é seu. Não do cliente ou do patrão, não do cartório, do encanador, do dentista, do advogado, das pessoas que te procuram pra isso ou aquilo, das respostas que tens que dar, do desgraçol infinito no noticiário.
Mas a vida é assim, como repeti milhões de vezes na minha.
Tirei então do fundo do baú um troço que talvez não tenhas lido, que escrevi dez anos atrás. Tem algo a ver com os tempos atuais, achei. E não só porque vem aí um novo filme do Capitão América.
OS DOIS STEVES
Vigilância global. Espionagem digital. Uso militar de drones. Assassinatos políticos em território estrangeiro.
Esses são os temas da maior bilheteria do planeta esta semana. É o novo filme do Capitão América, “O Soldado Invernal”. Quarenta anos atrás, o personagem estava morto. Ressuscita em boa forma. Na hora certa.
A Marvel sempre foi sobre rejeição e rebelião. Seus primeiros personagens foram Namor e o Tocha Humana, monstros incompreendidos, perseguidos pela sociedade, como depois os X-Men. Thor se rebelava contra a insensibilidade do pai, Odin. O Demolidor era um órfão cego. O Hulk é pura explosão do id contra qualquer princípio de civilização. E Peter Parker é o eterno perdedor, o Charlie Brown da Marvel (e me ensinou a desconfiar da imprensa, na figura de J. Jonah Jameson).
O único que não tinha problemas era o Capitão América. Era o Super Homem da Marvel, e como esse, perfeito demais para ser interessante. A virada dos 60 para os 70, com todas as mudanças sociais nos Estados Unidos e no mundo, decretou a obsolescência do herói.
Como o gibi dele não estava vendendo nada, os editores da Marvel resolveram apelar. Botaram os roteiros na mão de um garoto, com mandato para arriscar. Receberam mais que a encomenda.
Era Steve Englehart, 25 anos. Se safou de servir no Vietnã alegando " objeção de consciência", mesmo argumento usado por religiosos. Steve era contra a guerra, o governo, a hipocrisia. Fumava maconha todo dia, tomava ácido nos fins de semana. Queria ser escritor. Escrevia gibis.
Botou o Capitão na América de 1972. Enfrentando conflitos raciais, pobreza, drogas, radicais armados, manipulação política. Em seis meses, este personagem totalmente renovado estrelava uma das revista mais vendidas da Marvel. Era tópica, jornalística - por baixo da ação incessante e fantasias coloridas, claro.
De lá para cá o personagem variou entre esses dois polos. Na maior parte do tempo foi o bonzinho anódino. De vez em quando mostra a verdadeira face, nas mãos de gente como os escritores Mark Waid e Ed Brubaker, outras grandes inspirações de O Soldado Invernal. É a primeira aparição cinematográfica que faz justiça ao herói. Sua estreia, boa matinê, foi um exercício de nostalgia; sua participação no filme dos Vingadores foi quase de coadjuvante.
O arco de histórias de Englehart mais celebrado foi a saga do Império Secreto, publicada originalmente em 1974. Li em edição da Bloch, formatinho, um ou dois anos depois. Trata do plano maquiavélico de um grupo infiltrado no governo americano para tomar o poder.
Steve Rogers e seu parceiro, o super-herói negro Falcão, investigam e descobrem que o grande líder da conspiração é... o próprio presidente dos Estados Unidos. Desmascarado, se mata na frente do Capitão América.
Watergate estava nas manchetes dos jornais. O "Império Secreto" era o establishment político-industrial-militar. Seu líder no gibi era uma evidentemente o presidente Richard Nixon.
Era outra época. Mas o tema reverbera hoje e lota salas de cinema do planeta afora.
Quatro décadas depois, os EUA são de fato um império. Com mais poder que qualquer outro na história. Sem rival e nem terá. Porque invadiu e ocupa nossos corações, mentes e retinas.O supercapitalismo financeiro made in USA controla os mercados globais e os organismos internacionais.
Nos vigiam, com a colaboração das empresas que mais amamos. Eliminam a oposição via inanição ou à bala mesmo, na calada da noite. Lembra de Obama assistindo a execução de Osama?
O novo filme é radical, entre os combates acrobáticos e explosões 3D. Os diretores, os irmãos Russo, assumem a influência de thrillers políticos dos anos 70.
A presença de Robert Redford é um achado. Emprestou seu charme e boa pinta a personagens liberais, anti-establishment, a thrillers clássicos do período, como Três Dias do Condor e Todos os Homens do Presidente. Que ele interprete agora o vilão é um comentário ácido sobre 2014. Os liberais de ontem são os brucutus de hoje.
Não é governo democrata dos EUA que nos espiona, e opera para defender os interesses americanos a qualquer custo?
Englehart finalizou a saga do Império Secreto com um Steve Rogers enojado com o sistema, abandonando a identidade de Capitão América. Saiu pela América, easy rider, à procura de uma razão para viver e não só para lutar. Com o tempo, compreendeu que não devia obediência cega ao comandante-em-chefe, ao establishment. Passou a encarnar não a América, mas o sonho americano - o ideal de liberdade e justiça para todos.
Quem dera a América, o país, seguisse os exemplos dos dois Steves, Rogers e Englehart. Quem dera liberdade e justiça para todos fosse para todos mesmo, dentro e fora da América.
Mas o sucesso deste filme é razão para alento. Quando as luzes se acendem, ficam duas mensagens importantes.
No século 21, nem um império secreto está a salvo de indivíduos com coragem moral, empoderados pela tecnologia digital.
E mais importante: saímos com a convicção que os problemas da liberdade só podem ser resolvidos com mais liberdade, nunca com menos. Ter consciência disso faz de todos nós companheiros do Capitão América.
É uma boa luta para lutar.
(A conclusão do texto é inocente, talvez. Mas inocentes são os gibis e deles jamais me libertarei. Muito menos os que fundiram minha cuca, como se dizia quando eu era criança. É o caso de “A Saga do Império Secreto”, que me botou pra pensar em ideais e ideais traídos, em decisões pessoais e suas consequências, em patriotismo e governos e nos Estados Unidos, no esplendor dos meus dez anos de idade, em plena ditadura militar.
Talvez por causa disso, “O Soldado Invernal” continua sendo minha mais satisfatória experiência com um filme super-herói. E aqui está uma entrevista de Steve Englehart sobre o assunto…)
Maravilha!! E viva o sonho americano... Enquanto isso ouço a trilha sonora de "Retratos da vida", do Claude Lelouch, e me vem à ideia a necessidade de resistirmos, como muitos fizeram durante a Segunda Grande Guerra - resistiram e salvaram vidas. Não consigo mais do que ajudar alguns artistas gaúchos, mas sigo adiante.
Eu tô chorando 😭 muito. Será que a gente vai vencer um dia?