A arte e a guerra da impossível Lee Miller
Nunca houve ou haverá alguém parecido. Mas seu talento e coragem inspiram novos e necessários riscos
No aniversário de 80 anos do Dia D, é importante lembrar Lee Miller, correspondente de guerra que estava lá - e também na liberação de Dachau e Buchenwald e de Paris.
Lembro dela todo dia, porque vejo seus lábios na minha parede, registrados para a eternidade por Man Ray. Um beijo, querida.
Lee, recentemente citada no filme “Guerra Civil”, é personagem inverossímil que nenhum roteirista seria capaz de inventar. Modelo da “Vogue” descoberta pelo próprio Condé Nast; assistente, colaboradora e amante de Man Ray em Paris; artista talentosa no círculo dada-surrealista, co-criadora da solarização; fotógrafa de moda e retratista de notáveis; Lee que se transmuta em valente fotojornalista na Segunda Guerra.
Depois - não conto. Mas foi praticamente esquecida até ser redescoberta, graças ao trabalho de seu filho escavando os documentos que deixou. Aqui está uma longa entrevista dele, que é autor do livro “The Lives of Lee Miller”.
Lee era mais livre e engraçada e inteligente que qualquer um por perto. Quem mais pensaria, na Berlim recém-liberada, em celebrar a derrota do nazismo encontrando o apartamento de Hitler - e tomando um banho na sua banheira? Bem, Lee carregava o endereço do apê já fazia anos.
Nossa heroína era linda também. Podes conferir fazendo uma busca com o nome dela. É deslumbrante em sua temporada de “it girl” na “Vogue” e depois, em Paris. Vais encontrar fotos incríveis dela - que tiraram dela e que ela tirou, no estúdio, no front.
Mas dificilmente trombará essa, Lee vivida e escondida - e linda - debulhando milho na sua rocinha em East Sussex.
Alguma hora ia virar personagem mesmo. É projeto do coração de Kate Winslet, que batalhou oito anos para levar às telas “Lee”. Chega em setembro. A diretora é boa cinematógrafa e documentarista, Ellen Kuras, colaboradora de Scorsese, Gondry, Spike Lee.
Estou esperando desde 1981, quando me encantei com Man Ray e por tabela com sua musa. Se você tiver dinheiro e tempo, pegue um avião para Lausanne, onde corre essa exposição completíssima, maravilhosa.
A ênfase parece ser no seu fotojornalismo. Difícil dar conta da complexidade de Ms. Miller. Mas façamos figa, e o filme vem em boa hora.
Em um mundo permanentemente deflagrado, registrar as desumanidades da humanidades continua sendo muito importante. Vide Gaza, Ucrânia, Congo. São 111 conflitos armados acontecendo oficialmente neste momento no planeta, segundo a ONU.
Talvez seja ainda mais importante que nos anos 40, nossa última “grande guerra”. Porque hoje as fotos (e vídeos) correm mundo mais rápido, sem barreiras ou filtros. Só não é mais privilégio de fotojornalistas, testemunhar e denunciar a carnificina. É de qualquer um com um celular - e um olhar.
De seu lugar único na História, onde se arriscou na arte, na guerra e na vida, Lee Miller abençoa a coragem de cada clique.
TÁ TODO MUNDO TENTANDO
Mas raros conseguem exprimir com talento e precisão como tentamos - e conseguimos, não conseguimos, como a gente cai, levanta, se sacode.
A Gaía tenta e consegue, de um jeito muito próprio e com muita propriedade. Nesta newsletter aqui vizinha e por aí. Agora é livro, e ele será lançado ao lado de outra jornalista admirável, Renata Simões. Esta semana, em São Paulo.